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As ações militares iniciadas no último
domingo (07/10/01)1 contra o Afeganistão por parte dos
Estados Unidos e seus aliados não pegaram ninguém de surpresa.
Elas, por um lado, representam a concretização das ameaças
de retaliação realizadas pelo governo norte-americano desde
o dia dos fatídicos atentados contra as duas torres do Centro Mundial
do Comércio e contra a sede da Secretaria de Defesa daquele país.
Por outro lado, elas também representam a repetição
de uma soturna realidade de atos de beligerância empreendidos pela
aliança das potências ocidentais nas regiões periféricas
do globo (incluindo-se aí a região balcânica) no curso
da última década.
Durante os anos da guerra fria, a humanidade se habituou a aguardar ansiosamente
o início de uma era de paz. Nos últimos dez anos, viemos
nos acostumando a contemplar, com grande expectativa, o início
da próxima guerra. Entre um momento e outro, o mundo acompanhou
a proclamação, em 1991, do ingresso do planeta em uma Nova
Ordem Mundial. Tal anúncio, realizado pelo então presidente
norte-americano George Bush (o pai do atual George W. Bush), predicava
que, uma vez superada a bipolaridade estratégica e o risco da confrontação
nuclear entre os dois grandes blocos de poder no plano internacional,
o sistema internacional ingressaria em uma época dominada pela
vigência da paz, da liberdade, e pelo acesso de todas as populações
do globo aos benefícios do progresso material e espiritual. A julgar
pelo que temos visto desde então, somos levados a supor que alguma
coisa saiu errada.
A bem da verdade, uma ampla gama de doutrinas, interpretações
e teorias elaboradas por alguns dos principais estrategistas militares
dos Estados Unidos no contexto do declínio da polarização
Leste-Oeste exibiam muito pouca crença na possibilidade de efetivação
da tal era de paz e cooperação propalada pelo antigo titular
da Casa Branca. Em lugar disto, definia-se uma tendência, dominante
entre os formuladores da estratégia estadunidense, no sentido de
transferir o centro dos conflitos internacionais para o eixo norte-sul.
Caracterização teórico-conceitual que apenas formalizava
uma percepção pré-existente, uma vez que, desde o
fim da Segunda Guerra Mundial, os EEUU vinham se engajando em conflitos,
guerras e intervenções no hemisfério sul, verdadeiros
cenários da "guerra quente", impossível de ser
travada diretamente contra seu competidor nuclear soviético.
Em 1977, o analista Guy Pauker produzia um trabalho monográfico
para a Força Aérea dos Estados Unidos no qual prognosticava
que a matriz principal das possíveis crises mundiais da década
seguinte seria não a atuação da União Soviética
e seus aliados, mas as disputas entre o Terceiro Mundo e as "democracias
industriais" pela repartição da produção
mundial.2 Em seu esforço de demonstrar o sentido perturbador
para a ordem mundial que poderia vir a ser desempenhado pelas reivindicações
terceiro-mundistas, chegava a ponto de compará-las aos embaraços
provocados pelo movimento operário ao desenvolvimento da industrialização
dos países ocidentais ao longo do século XIX.
Doze anos depois, o primeiro presidente George Bush (O "papa Bush")
admitia em um discurso que: "os desafios à segurança
com os quais nos deparamos hoje não procedem apenas do Leste (...)
O surgimento de potências regionais está modificando rapidamente
a paisagem estratégica (...) devemos controlar as ambições
agressivas dos estados renegados."3 Na autorizada locução
do primeiro presidente norte-americano da era pós-guerra fria chamam
a atenção dois elementos fundamentais, em primeiro lugar
a percepção de que, no vácuo legado pelo degelo do
sistema de poder mundial que se seguiu ao declínio da bipolaridade,
abria-se o espaço para a emergência de potências intermediárias,
capazes de gerar uma situação de fragmentação
pela base do sistema de poder mundial, cuja tendência dominante
operava, por sua vez, no sentido de sua concentração pela
cúpula, gerando dificuldades, ainda que limitadas, ao projeto estadunidense
de unipolaridade mundial. Em segundo lugar, legitimava o uso de uma categoria
que passaria a ser utilizada sistematicamente para a caracterização
dos estados "insubmissos" dentro da cena global, ou seja, aqueles
que questionassem o status quo econômico, político e estratégico
mundial, a de "estados renegados".4
As ameaças à estabilidade do sistema internacional geradas
pela fragmentação da base do poder mundial eram acentuadas
de forma ainda mais específica pelo então diretor da CIA,
William Webster, ao prever, em 1990, que, até o ano 2000, pelo
menos 15 países em desenvolvimento haveriam de produzir ou ter
adquirido condições de produzir seus próprios mísseis
balísticos.5 Porém, foi apenas após o
empreendimento militar conjunto contra o Iraque que as formulações
dos estrategistas norte-americanos acerca do perigo procedente do sul
adquiriu seus contornos definitivos. Partiu da pluma de William Pfaff,
articulista da revista Foreign Affairs, a formulação de
que o desafio apresentado por Sadam Hussein às potências
ocidentais poderia ser interpretado como "Uma metáfora para
um Terceiro Mundo que pode atacar as nações ricas que dominam
o sistema internacional e vingar assim a pobreza do sul."6
Foi nesta mesma atmosfera que um outro colaborador da supracitada revista
chamado Charles Krauthammer, ex-conselheiro do presidente Ronald Reagan,
elaborou, simultaneamente, o conceito de "Estado-arma" para
a caracterização de nações periféricas
propensas a utilizar seus recursos militares contra os interesses ocidentais.
Algo como uma versão estatal dos terroristas suicidas, de tão
intensa atuação em nossos dias.7 A manifestação
do receio de que a emersão de potências médias em
regiões do 3o mundo colocasse em risco a hegemonia unipolar dos
Estados Unidos encontra-se refletida no título do próprio
ensaio de Krauthammer, "O Movimento Unipolar". Porém,
a contribuição intelectual mais notável deste publicista
da Casa Branca foi a formulação do conceito de "intifada
global". Observando o impacto provocado pelas "reivindicações
de hegemonia muçulmana" em diferentes áreas do mundo
- da Iugoslávia à Cachemira -, Krauthammer identificou nos
choques entre as forças do Islã e as do mundo não-muçulmano,
nas chamadas linhas de cisão entre os dois mundos a principal força
fragmentadora do sistema, cujos efeitos desagregadores poderiam ser exemplificados
na condição a que fora levada a cidade de Beirute no conflito
entre as forças do islamismo militante e o cristianismo maronita.8
Não é difícil perceber que todas estas elaborações
perseguiam os mesmos objetivos, a construção de um novo
paradigma de conflito que legitimasse o projeto de hegemonia unipolar
dos Estados Unidos no mundo, o estabelecimento de uma base para a revalidação
da aliança das nações ocidentais em nome da segurança
internacional ameaçada pelos perigos procedentes do Terceiro Mundo
e, provavelmente, visava também justificar, aos olhos do contribuinte
norte-americano, a permanência dos vultosos investimentos militares
de seus governos num mundo pós-guerra fria, tornando aceitáveis
os argumentos que defendiam a necessidade da intervenção
de Washington nas regiões periféricas do mundo. De onde
chegamos ao Afeganistão.
Uma compreensão adequada dos motivos da intervenção
militar direta dos Estados Unidos no país da Ásia Central
necessita incorporar dois fatores: o primeiro e mais conhecido de todos
é a demanda por uma resposta violenta aos atos terrorista de 11
setembro, atribuídos a forças apoiadas pelo governo afegão,
situação imposta pela própria pressão exercida
pelos setores majoritários da opinião pública norte-americana
e indispensável à recomposição da confiabilidade
do governo estadunidense frente aos anseios de segurança de sua
própria sociedade. O segundo consiste na urgência de se reconstituir
a estabilidade e o equilíbrio de poder na região, determinada
pela perda de confiança dos EUA no papel até então
desempenhado pelo Talibã. Em uma região caracterizada pela
concentração de um grande número de potências
médias como são Irã, Iraque, Paquistão, Índia
e o próprio Afeganistão e duas grandes potências nucleares,
Rússia e China, além das ex-repúblicas soviéticas
do Uzbequistão e do Tadjiquistão, o equilíbrio de
poder depende da não expansão da influência de qualquer
dos estados citados sobre seus vizinhos. O que significa dizer que, para
os Estados Unidos não seria aceitável qualquer alteração
no equilíbrio político, territorial ou militar daquela área.
Ora, para tal objetivo, o governo do Talibã vinha até então
funcionando perfeitamente. Seu extremismo religioso foi fundamental não
apenas para o enfrentamento, no passado, da influência da então
União Soviética, mas continuou mais tarde como uma barreira
de contenção a qualquer veleidade hegemonista que viesse
a ser manifestada tanto por parte da China, quanto pela Índia.
Por outro lado, a confissão suni de seus integrantes dividia o
campo da revolução islâmica e bloqueava, da mesma
forma, a projeção da influência do xia iraniano. O
que fugiu ao roteiro dos estrategistas de Washington foi que, a necessidade
de constante atualização do radicalismo religioso do movimento,
associado à consolidação e aprofundamento de sua
fundamentação no tradicionalismo tribal se cristalizaria
em uma postura de rejeição extremada do mundo ocidental
e todos os seus valores - incluídos aí os associados organicamente
aos processos de globalização econômica e subordinação
à hegemonia unipolar estadunidense. Ao assim fazê-lo, este
movimento político religioso passou a engendrar dois sérios
riscos, um potencial - servir de base de apoio a uma insurgência
de cunho étnico-religioso no Paquistão, o qual poderia levar
ao governo deste país uma sucursal do Talibã, e assim implodir
o equilíbrio de forças na região - e um real, a ligação
com grupos político-religiosos radicais, inclusive terroristas
como a Al Qaeda de Osama Bin Laden.
Sem desconhecer, em hipótese alguma, a importância do atentado
de 11 de setembro na determinação da ofensiva militar norte-americana
contra o país centro-asiático, pretendo situá-la
sobre o pano de fundo político-estratégico do projeto de
intervenção militar ostensiva dos Estados Unidos no 3o mundo,
visando conter o processo de fragmentação do poder mundial
pela base representado pela emersão de pólos expressivos
de poder regional. Trata-se, por outro lado também, de realçar
aquilo que a evolução dos conflitos localizados já
comprovou, a predileção das administrações
norte-americanas pela solução manu militari das crises político-militares
das regiões periféricas, em lugar do esforço de resolução
negociada das mesmas, sobre a base do Direito Internacional e através
dos organismos multilaterais do sistema das nações unidas.
Cabe enfatizar, por fim, que talvez não seja exagerado supor que
não consta da agenda do segundo Bush, como não constava
da agenda do primeiro, inverter o curso de confrontação,
exclusão e conflito predominantes no sistema internacional, desde
o fim da guerra fria, pelo ideal da busca da paz duradoura e da cooperação,
propagandeado pelo presidente norte-americano em 1991.
O que nos conduz à previsão de que, qualquer que seja o
desfecho da mais recente expedição militar norte-americana
e seja qual for a solução encontrada para o "problema
afegão" e o "combate ao terrorismo internacional",
a humanidade pode esperar para breve outros conflitos do gênero.
NOTAS:
1 O artigo "Crônica de uma guerra
anunciada" foi redigido no dia 11 de outubro de 2001, um mês
após os atentados terroristas de 11 de setembro e quatro dias após
o início dos bombardeios norte-americanos ao Afeganistão.
2 Guy J. Pauker, "Military Implications of a Possible
World Order Crisis in the 1980s".
3 ". Citado por Joe Stork em, "Nuevos enemigos para
un nuevo orden mundial. ´Intifadas globales` y paradigmas perdidos",
Papeles para la Paz, No. 45, 1992.
4 Eventualmente chamados também de "estados bastardos"
ou, dependendo das circunstâncias, "estados terroristas".
5 Steven Shalom, "The United States and the Gulf War",
Z Magazine, fevereiro de 1990.
6 William Pfaff, "Redefining World Power", Foreign
Affairs, Vol. 70, No1, 1990-1991.
7 Cf. Charles Krauthammer, "The Unipolar Movement",
Foreign Affairs, Vol. 70, No.1, 1990-1991.
8 Cf. Charles Krauthammer, "The New Crescent of Crisis:
Global Intifada", Washington Post, 16 de fevereiro de 1990. É
pertinente verificar que esta postulação de Krauthammer
forneceria um dos alicerces para a formulação da teoria
de Samuel Huntington sobre o "choque de civilizações".
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