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CRÔNICA DE UMA GUERRA ANUNCIADA

Muniz Ferreira
Professor de História Contemporânea da UFBA

A guerra não passa de um duelo em escala mais
ampla (...) seu desígnio imediato é abater o
adversário a fim de torná-lo incapaz de qualquer
resistência. A guerra é, portanto, um ato de
violência destinado a constranger o adversário a
executar a nossa vontade.

Carl von Clausewitz

 

As ações militares iniciadas no último domingo (07/10/01)1 contra o Afeganistão por parte dos Estados Unidos e seus aliados não pegaram ninguém de surpresa. Elas, por um lado, representam a concretização das ameaças de retaliação realizadas pelo governo norte-americano desde o dia dos fatídicos atentados contra as duas torres do Centro Mundial do Comércio e contra a sede da Secretaria de Defesa daquele país. Por outro lado, elas também representam a repetição de uma soturna realidade de atos de beligerância empreendidos pela aliança das potências ocidentais nas regiões periféricas do globo (incluindo-se aí a região balcânica) no curso da última década.
Durante os anos da guerra fria, a humanidade se habituou a aguardar ansiosamente o início de uma era de paz. Nos últimos dez anos, viemos nos acostumando a contemplar, com grande expectativa, o início da próxima guerra. Entre um momento e outro, o mundo acompanhou a proclamação, em 1991, do ingresso do planeta em uma Nova Ordem Mundial. Tal anúncio, realizado pelo então presidente norte-americano George Bush (o pai do atual George W. Bush), predicava que, uma vez superada a bipolaridade estratégica e o risco da confrontação nuclear entre os dois grandes blocos de poder no plano internacional, o sistema internacional ingressaria em uma época dominada pela vigência da paz, da liberdade, e pelo acesso de todas as populações do globo aos benefícios do progresso material e espiritual. A julgar pelo que temos visto desde então, somos levados a supor que alguma coisa saiu errada.
A bem da verdade, uma ampla gama de doutrinas, interpretações e teorias elaboradas por alguns dos principais estrategistas militares dos Estados Unidos no contexto do declínio da polarização Leste-Oeste exibiam muito pouca crença na possibilidade de efetivação da tal era de paz e cooperação propalada pelo antigo titular da Casa Branca. Em lugar disto, definia-se uma tendência, dominante entre os formuladores da estratégia estadunidense, no sentido de transferir o centro dos conflitos internacionais para o eixo norte-sul. Caracterização teórico-conceitual que apenas formalizava uma percepção pré-existente, uma vez que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os EEUU vinham se engajando em conflitos, guerras e intervenções no hemisfério sul, verdadeiros cenários da "guerra quente", impossível de ser travada diretamente contra seu competidor nuclear soviético.
Em 1977, o analista Guy Pauker produzia um trabalho monográfico para a Força Aérea dos Estados Unidos no qual prognosticava que a matriz principal das possíveis crises mundiais da década seguinte seria não a atuação da União Soviética e seus aliados, mas as disputas entre o Terceiro Mundo e as "democracias industriais" pela repartição da produção mundial.2 Em seu esforço de demonstrar o sentido perturbador para a ordem mundial que poderia vir a ser desempenhado pelas reivindicações terceiro-mundistas, chegava a ponto de compará-las aos embaraços provocados pelo movimento operário ao desenvolvimento da industrialização dos países ocidentais ao longo do século XIX.
Doze anos depois, o primeiro presidente George Bush (O "papa Bush") admitia em um discurso que: "os desafios à segurança com os quais nos deparamos hoje não procedem apenas do Leste (...) O surgimento de potências regionais está modificando rapidamente a paisagem estratégica (...) devemos controlar as ambições agressivas dos estados renegados."3 Na autorizada locução do primeiro presidente norte-americano da era pós-guerra fria chamam a atenção dois elementos fundamentais, em primeiro lugar a percepção de que, no vácuo legado pelo degelo do sistema de poder mundial que se seguiu ao declínio da bipolaridade, abria-se o espaço para a emergência de potências intermediárias, capazes de gerar uma situação de fragmentação pela base do sistema de poder mundial, cuja tendência dominante operava, por sua vez, no sentido de sua concentração pela cúpula, gerando dificuldades, ainda que limitadas, ao projeto estadunidense de unipolaridade mundial. Em segundo lugar, legitimava o uso de uma categoria que passaria a ser utilizada sistematicamente para a caracterização dos estados "insubmissos" dentro da cena global, ou seja, aqueles que questionassem o status quo econômico, político e estratégico mundial, a de "estados renegados".4
As ameaças à estabilidade do sistema internacional geradas pela fragmentação da base do poder mundial eram acentuadas de forma ainda mais específica pelo então diretor da CIA, William Webster, ao prever, em 1990, que, até o ano 2000, pelo menos 15 países em desenvolvimento haveriam de produzir ou ter adquirido condições de produzir seus próprios mísseis balísticos.5 Porém, foi apenas após o empreendimento militar conjunto contra o Iraque que as formulações dos estrategistas norte-americanos acerca do perigo procedente do sul adquiriu seus contornos definitivos. Partiu da pluma de William Pfaff, articulista da revista Foreign Affairs, a formulação de que o desafio apresentado por Sadam Hussein às potências ocidentais poderia ser interpretado como "Uma metáfora para um Terceiro Mundo que pode atacar as nações ricas que dominam o sistema internacional e vingar assim a pobreza do sul."6
Foi nesta mesma atmosfera que um outro colaborador da supracitada revista chamado Charles Krauthammer, ex-conselheiro do presidente Ronald Reagan, elaborou, simultaneamente, o conceito de "Estado-arma" para a caracterização de nações periféricas propensas a utilizar seus recursos militares contra os interesses ocidentais. Algo como uma versão estatal dos terroristas suicidas, de tão intensa atuação em nossos dias.7 A manifestação do receio de que a emersão de potências médias em regiões do 3o mundo colocasse em risco a hegemonia unipolar dos Estados Unidos encontra-se refletida no título do próprio ensaio de Krauthammer, "O Movimento Unipolar". Porém, a contribuição intelectual mais notável deste publicista da Casa Branca foi a formulação do conceito de "intifada global". Observando o impacto provocado pelas "reivindicações de hegemonia muçulmana" em diferentes áreas do mundo - da Iugoslávia à Cachemira -, Krauthammer identificou nos choques entre as forças do Islã e as do mundo não-muçulmano, nas chamadas linhas de cisão entre os dois mundos a principal força fragmentadora do sistema, cujos efeitos desagregadores poderiam ser exemplificados na condição a que fora levada a cidade de Beirute no conflito entre as forças do islamismo militante e o cristianismo maronita.8
Não é difícil perceber que todas estas elaborações perseguiam os mesmos objetivos, a construção de um novo paradigma de conflito que legitimasse o projeto de hegemonia unipolar dos Estados Unidos no mundo, o estabelecimento de uma base para a revalidação da aliança das nações ocidentais em nome da segurança internacional ameaçada pelos perigos procedentes do Terceiro Mundo e, provavelmente, visava também justificar, aos olhos do contribuinte norte-americano, a permanência dos vultosos investimentos militares de seus governos num mundo pós-guerra fria, tornando aceitáveis os argumentos que defendiam a necessidade da intervenção de Washington nas regiões periféricas do mundo. De onde chegamos ao Afeganistão.
Uma compreensão adequada dos motivos da intervenção militar direta dos Estados Unidos no país da Ásia Central necessita incorporar dois fatores: o primeiro e mais conhecido de todos é a demanda por uma resposta violenta aos atos terrorista de 11 setembro, atribuídos a forças apoiadas pelo governo afegão, situação imposta pela própria pressão exercida pelos setores majoritários da opinião pública norte-americana e indispensável à recomposição da confiabilidade do governo estadunidense frente aos anseios de segurança de sua própria sociedade. O segundo consiste na urgência de se reconstituir a estabilidade e o equilíbrio de poder na região, determinada pela perda de confiança dos EUA no papel até então desempenhado pelo Talibã. Em uma região caracterizada pela concentração de um grande número de potências médias como são Irã, Iraque, Paquistão, Índia e o próprio Afeganistão e duas grandes potências nucleares, Rússia e China, além das ex-repúblicas soviéticas do Uzbequistão e do Tadjiquistão, o equilíbrio de poder depende da não expansão da influência de qualquer dos estados citados sobre seus vizinhos. O que significa dizer que, para os Estados Unidos não seria aceitável qualquer alteração no equilíbrio político, territorial ou militar daquela área. Ora, para tal objetivo, o governo do Talibã vinha até então funcionando perfeitamente. Seu extremismo religioso foi fundamental não apenas para o enfrentamento, no passado, da influência da então União Soviética, mas continuou mais tarde como uma barreira de contenção a qualquer veleidade hegemonista que viesse a ser manifestada tanto por parte da China, quanto pela Índia. Por outro lado, a confissão suni de seus integrantes dividia o campo da revolução islâmica e bloqueava, da mesma forma, a projeção da influência do xia iraniano. O que fugiu ao roteiro dos estrategistas de Washington foi que, a necessidade de constante atualização do radicalismo religioso do movimento, associado à consolidação e aprofundamento de sua fundamentação no tradicionalismo tribal se cristalizaria em uma postura de rejeição extremada do mundo ocidental e todos os seus valores - incluídos aí os associados organicamente aos processos de globalização econômica e subordinação à hegemonia unipolar estadunidense. Ao assim fazê-lo, este movimento político religioso passou a engendrar dois sérios riscos, um potencial - servir de base de apoio a uma insurgência de cunho étnico-religioso no Paquistão, o qual poderia levar ao governo deste país uma sucursal do Talibã, e assim implodir o equilíbrio de forças na região - e um real, a ligação com grupos político-religiosos radicais, inclusive terroristas como a Al Qaeda de Osama Bin Laden.
Sem desconhecer, em hipótese alguma, a importância do atentado de 11 de setembro na determinação da ofensiva militar norte-americana contra o país centro-asiático, pretendo situá-la sobre o pano de fundo político-estratégico do projeto de intervenção militar ostensiva dos Estados Unidos no 3o mundo, visando conter o processo de fragmentação do poder mundial pela base representado pela emersão de pólos expressivos de poder regional. Trata-se, por outro lado também, de realçar aquilo que a evolução dos conflitos localizados já comprovou, a predileção das administrações norte-americanas pela solução manu militari das crises político-militares das regiões periféricas, em lugar do esforço de resolução negociada das mesmas, sobre a base do Direito Internacional e através dos organismos multilaterais do sistema das nações unidas. Cabe enfatizar, por fim, que talvez não seja exagerado supor que não consta da agenda do segundo Bush, como não constava da agenda do primeiro, inverter o curso de confrontação, exclusão e conflito predominantes no sistema internacional, desde o fim da guerra fria, pelo ideal da busca da paz duradoura e da cooperação, propagandeado pelo presidente norte-americano em 1991.
O que nos conduz à previsão de que, qualquer que seja o desfecho da mais recente expedição militar norte-americana e seja qual for a solução encontrada para o "problema afegão" e o "combate ao terrorismo internacional", a humanidade pode esperar para breve outros conflitos do gênero.

NOTAS:

1 O artigo "Crônica de uma guerra anunciada" foi redigido no dia 11 de outubro de 2001, um mês após os atentados terroristas de 11 de setembro e quatro dias após o início dos bombardeios norte-americanos ao Afeganistão.
2 Guy J. Pauker, "Military Implications of a Possible World Order Crisis in the 1980s".
3 ". Citado por Joe Stork em, "Nuevos enemigos para un nuevo orden mundial. ´Intifadas globales` y paradigmas perdidos", Papeles para la Paz, No. 45, 1992.
4 Eventualmente chamados também de "estados bastardos" ou, dependendo das circunstâncias, "estados terroristas".
5 Steven Shalom, "The United States and the Gulf War", Z Magazine, fevereiro de 1990.
6 William Pfaff, "Redefining World Power", Foreign Affairs, Vol. 70, No1, 1990-1991.
7 Cf. Charles Krauthammer, "The Unipolar Movement", Foreign Affairs, Vol. 70, No.1, 1990-1991.
8 Cf. Charles Krauthammer, "The New Crescent of Crisis: Global Intifada", Washington Post, 16 de fevereiro de 1990. É pertinente verificar que esta postulação de Krauthammer forneceria um dos alicerces para a formulação da teoria de Samuel Huntington sobre o "choque de civilizações".

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