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A MORTE EM VENEZA. UMA ADVERTÊNCIA
À EUROPA
Luiz Elias Sanches1
"Nesta noite teve um sonho terrível (...)
um sacudir de correntes, retumbar, abafados trovões acompanhados
de júbilos estridentes e de um certo uivar com o som prolongado
de "u" (...) grandes eram a sua repugnância, grande seu
medo, honesto o seu desejo de salvaguardar o seu eu até o fim contra
o estranho, o inimigo do sereno e digno espírito. Mas o barulho
e a gritaria, multiplicados pela rocha ecoante, cresciam, sobrepujavam,
aumentavam até a loucura arrebatante (...) com as batidas dos timbales
seu coração retumbava, seu cérebro girava, acometido
de raiva, de desvario, de atordoante voluptuosidade, e sua alma desejou
unir-se à dança de roda do deus (...) Com espuma nos lábios,
vociferavam, excitavam-se com gestos lascivos e mãos buliçosas,
rindo e gemendo, empurravam os bastões espinhosos um na carne do
outro e lambiam o sangue dos membros. Mas com eles, entre eles, estava
agora o sonhador, submisso ao deus estranho (...) então, sobre
o terreno de musgo revolvido, começou um ilimitado cruzamento,
em sacrifício ao deus. E sua alma experimentou a luxúria
e a loucura da decadência. " 2
Esta passagem de "A MORTE EM VENEZA" , de Thomas
Mann, de 1912, parece cristalizar a tendência da Alemanha de seu
tempo, quando uma orgia arrebatadora procurava arrastar a todos para o
redemoinho da luxúria e da loucura da guerra.
Thomas Mann nasceu em Lübeck e foi criado em Munique, longe das influências
prussianas: "Berlim significava a Prússia, a natural inimiga
de Munique e Baviera. A Alemanha do Norte olhava a do Sul como levando
uma boa vida, despreocupada, sentimentalista, que tendia para ser deploravelmente
democrática, se não até liberal. Por seu turno, a
Alemanha do Sul olhava a do Norte como um fanfarrão arrogante,
com falta de boas maneiras e uma expressão insolente, politicamente
reacionário, agressivamente preocupado com o trabalho." 3
A Alemanha experimentou, a partir de 1870, um vertiginoso crescimento
econômico. A sua produção de aço, que correspondia
a um quarto da britânica, em 1914 já era igual à soma
do aço produzido pelo Reino Unido, França e Rússia.
O consumo de carvão na Grã Bretanha, entre 1861 e 1913 se
multiplicou duas vezes e meia. Durante o mesmo período, na Alemanha,
multiplicou-se treze vezes e meia. O mesmo ritmo irrefreado se via no
crescimento da produção da indústria química
e da energia elétrica.
As transformações culturais também foram bastante
acentuadas naquele período. A obra de Nietzsche, inicialmente relegada
à indiferença, já alcançara o reconhecimento
de seus conterrâneos e, no campo das artes, especialmente no da
música, a Alemanha ocupava um lugar de destaque. Wagner tinha encontrado
em Richard Strauss ? conhecido na época como Richard II - o seu
sucessor no reconhecimento internacional.
A Alemanha cobrava da Europa e do mundo o reconhecimento de sua primazia,
de sua superioridade fundada num espírito inovador e determinado,
que recusava os princípios legados ao mundo pela cultura anglo-francesa,
considerada superficial e conservadora.
O sucesso de Richard Strauss se deve a essa ânsia por romper, não
só os cânones da composição musical, mas também
os princípios de uma ética baseada numa visão de
mundo considerada como superada. Esperava-se do artista uma criação
repleta de pulsão vital, de energia, que não podia ser contida
nos estreitos limites estabelecidos pelas regras de criação.
Os próprios temas escolhidos por Strauss transbordavam de paixão
humana : "Assim falava Zarathustra" ? eloqüente e arrebatadora,
"Electra", "Morte e Transfiguração",
"Salomé". Todos possuíam um forte apelo às
emoções mais cruas da humanidade.
O povo alemão parecia ansioso, sedento por tudo que pudesse representar
a emoção, o instinto humano. "Salomé",
recusada no resto da Europa, fez estrondoso sucesso na Alemanha. "Electra"
foi outro grande sucesso de Strauss. Após a estréia, Herman
Bahr teria comentado acerca da música que "ela exprimia algo
de sinistro sobre o tempo de então, uma espécie de orgulho
nascido de um poder sem limites, um desafio à ordem, induzindo
ao caos." 4
Um dos sintomas daquele desafio à ordem e repulsa pela rotina pode
ser entrevisto na atração exercida pela Itália sobre
os homens do Norte. Nietzsche deixou-nos um poema em que louva a vida
natural e pulsante do Sul, contraposta à vida do Norte, menos visceral
e mais baseada em valores relacionados à racionalidade:
[...]
O mar, tão branco, dormindo absorto,
E ali, purpúrea, vai uma vela
Penhasco, idílios, torres e cais,
Balir de ovelhas e figueirais. Sul da inocência, me acolhe nela!
[...]
Jovens, tão falsos, tão inconstantes,
Pareceis feitos bem para amantes
E em passatempos vos entreter...
No norte amei ? e confesso a custo ?
Uma mulher velha de dar susto:
"Verdade", o nome dessa mulher.
Goethe, Ibsen e Burckhardt são outros exemplos
daquela atração exercida pela Itália. Wagner encontrou
em Veneza a inspiração para seu "Tristão e Isolda"
e, em 1883, morreu naquela cidade. Strauss, o Richard II, chegou a manifestar
o desejo de compor uma peça sobre César Bórgia ou
Savonarola. A Itália era o outro, o diferente. O sol, no lugar
do frio; a extroversão, no lugar da frieza; a paixão, no
lugar do cálculo. É exatamente a busca "do estranho
e do sem relação" que leva o protagonista da história
de Thomas Mann a Veneza.
Quando "Morte em Veneza" vem à luz, em 1912, já
era possível vislumbrar a guerra vindoura nas escaramuças
diplomáticas e políticas, como as relacionadas à
"questão marroquina" e à "questão
balcânica". No Congresso de Basiléia da Internacional
Socialista, naquele ano, um dos temas em pauta foi a elaboração
de uma política para enfrentar a possibilidade da guerra. Thomas
Mann também lançou sua advertência. Já na chegada
de seu personagem Gustav Von Aschenbach, a Veneza, o autor parece dizer:
Vejam onde toda essa "paixão e arrebatamento em busca do estranho
e do sem relação" irão levar.
"Assim, ele via de novo o mais espantoso desembarcadouro,
aquela brilhante composição de construções
fantásticas que a república apresentava aos olhos admirados
dos navegantes que se aproximavam, a leve magnificência do palácio
e a Ponte dos Suspiros, as colunas com leões e santos nos cais,
o flanco avançado da suntuosa capela fabulosa, a vista sobre o
Portal e o relógio gigantesco." 5
No meio de todo o deslumbramento da paisagem descrita,
Mann não deixou de citar o portal, onde só falta a famosa
advertência:
"Entra-se por mim na cidade da tristeza; entra-se
por mim no abismo da eterna dor; entra-se por mim na mansão dos
condenados.
A eterna Justiça moveu Deus criar-me; obra sou da Divina Potestade,
da suma sapiência, e do primeiro amor.
Antes de mim não foram criadas, senão substâncias
eternas, e eu eternamente duro. Vós, que em mim entrais, perdei
toda a esperança de sair !"6
Delírio? Superinterpretação? Afinal,
nem todo portal o é do inferno. Mas estou absolutamente convencido
de que Mann não cita o portal por mero acaso. Vamos mais a frente.
Após desembarcar do navio, Aschenbach toma uma gôndola cujo
condutor simplesmente descumpre suas instruções, remando
em sentido diferente do solicitado. Recostado, de olhos fechados, o passageiro,
a princípio não nota. Quando percebe admoesta o gondoleiro,
que nega-se a cumprir suas ordens:
"Era um homem com fisionomia descortês, brutal mesmo, vestido
de azul a marinheira, com uma faixa amarela na cintura e um disforme chapéu
de palha ousado e torto na cabeça, cujo trançado começava
a abrir-se (...) Uma espécie de sentimento de dever ou orgulho,
a lembrança, por assim dizer, de que devia prevenir-se, fez com
que recobrasse ânimo mais uma vez. Perguntou:
? Quanto cobra pela viagem?
Olhando por cima dele o gondoleiro respondeu:
? O senhor pagará.
(...) Aschenbach desceu da gôndola na ponte, auxiliado por aquele
velho que em todos os embarcadouros de Veneza está a postos com
seu chapéu, e, como lhe faltava dinheiro miúdo, atravessou
para o hotel vizinho da ponte, para trocar. É atendido no saguão,
volta, encontra sua bagagem num carrinho no cais. Gôndola e gondoleiro
tinham sumido.
? Ele deu o fora ? disse o velho com o arpéu. ? Um homem mau, um
homem sem concessão, prezado senhor. É o único gondoleiro
que não tem concessão..."7
Aqui, a referência ao Rio Aqueronte e ao barqueiro
Caronte me parecem bastante eloqüentes para serem simplesmente deixadas
de lado. Ao ser indagado acerca do preço da viagem, o gondoleiro,
"o único que não tem concessão", responde
de forma sinistra : "O senhor pagará". Para, à
chegada, desaparecer sem esperar pelo pagamento. E no entanto, sua resposta
"O senhor pagará", continua ecoando em nossas mentes.
Em que moeda ele espera que seja feito o pagamento?
Arrastado pelo turbilhão da paixão, o homem torna-se mesmo
aquilo que mais o repugna. Von Aschenbach, no navio que o levou a Veneza,
viu um velho que procurava passar-se por jovem através de tudo
que pudesse haver de mais exterior - roupa, maquiagem, vocabulário,
atitudes estereotipadas. É com estranheza e , depois, repulsa,
que Aschenbach nos fala deste homem:
"Como podia ser isso? Aschenbach cobriu a testa com sua mão
e fechou os olhos, que ardiam porque dormira pouco. Pareceu-lhe que nem
tudo era como de costume, que começava a alastrar-se uma estranheza
sonhadora, uma desfiguração do mundo para o esquisito que
talvez ainda pudesse ser detida se escurecesse seu rosto e tornasse a
olhar. (...) Mas era nojento de se ver em que estado, na falsa comunidade
com a juventude, tinha ficado o velho janota. Seu cérebro velho
não conseguira suportar o vinho como os jovens robustos, estava
miseravelmente bêbado. De olhar idiota, um cigarro entre os dedos
trêmulos, mantendo com dificuldade o equilíbrio, vacilava
no mesmo lugar, impelido pela bebedeira para frente e para trás."8
Ele considera patético um homem, já idoso,
tentando se fazer passar por jovem entre jovens, que se deixa levar pela
embriaguez do vinho e da paixão. Nosso protagonista, aqui, como
na cena do sonho, citada no início deste trabalho, ainda tenta
resistir à "desfiguração do mundo para o esquisito".
Não quer acreditar no que vê. Não pode acreditar.
Fecha os olhos para em seguida reabri-los e verificar se não estava
sendo enganado por seus sentidos. Porém ele mesmo, mais a frente,
quando se vê acometido pela paixão pelo jovem Tadzio, passa,
gradativamente, a se comportar como o falso jovem que viu no navio. "Pormenores
juvenis" acrescentados ao terno, idas mais freqüentes à
barbearia, tintura no cabelo, maquiagem para dar mais simetria às
sobrancelhas, para aumentar a impressão de brilho dos olhos, para
prolongar o corte dos olhos, para avermelhar o lábios, para camuflar
as rugas. Tudo para rejuvenescer, para diminuir a distância entre
sua velhice e a juventude daquele que se tornara o objeto de sua paixão.
Para Thomas Mann, o turbilhão de paixão que empolgava a
Alemanha retirava de seu povo toda a sua substância, e ele simplesmente
perdia sua identidade frente às situações. O autor
diz isso o tempo todo quando, ao invés de referir-se ao seu personagem
pelo seu nome, expressão externa de sua unidade e identidade, apenas
refere-se a ele em função das circunstâncias de cada
momento. Assim, de acordo com a situação, é "o
viajante", ou "o repousante", ou "o solitário
calado", ou "o passeante", ou "o que partia",
ou "o atormentado", ou "o fugitivo", ou "o entusiasmado"
e assim por diante. O Homem camaleão. Na verdade, o turbilhão
reforça a mutabilidade da personalidade, que já é
algo maleável.
Mann adverte seus contemporâneos de que aquela busca pelo "estranho
e o sem relação" é uma busca ilusória
e perigosa. Uma farsa. O desejo, em seu personagem, de viajar, foi despertado
pela súbita visão de um viajante, um estrangeiro, num fim
de tarde nublado. Mais tarde, em Veneza, entre os componentes de um grupo
de cantores ambulantes que se apresentavam em troca de algumas moedas
dos turistas, ele tem sua atenção atraída pelo saltimbanco
responsável pela guitarra, o solista, pela descrição
confere exatamente com a do estrangeiro do início da história
sem , porém, que Aschenbach se dê conta disso. O homem "Não
parecia veneziano, mas da raça dos cômicos napolitanos, meio
rufião, meio comediante, brutal e ousado, perigoso e divertido."
Mesclava piruetas de palhaço com gargalhadas diabólicas.
Um misto de bobo da corte e demônio.
A sensação de deslumbramento que experimentava como conseqüência
de sua paixão, é também ilusória. Até
ver Tadzio pela primeira vez, toda a narrativa transcorre sob um clima
escuro, sombrio, nebuloso. O entardecer nublado, em que vê o estrangeiro
pela primeira vez; a escolha do local para onde ir, "um objetivo
que ainda não lhe era claro"; a faixa de água suja
que se alargava com a partida do navio; céu e mar "turvos"
e "plúmbeos" , na chegada a Veneza e a gôndola,
"estranha embarcação de tempos baladescos, tradicionalmente
inalterada e tão singularmente preta como entre todas as coisas
só o são os ataúdes - lembra caladas e criminosas
aventuras em noites murmurantes, lembra mais ainda a própria morte,
macas e execuções sombrias e a última silenciosa
viagem." 9
Depois de conhecer Tadzio, começa a ver o mundo de outra forma.
A paixão ilumina-lhe os olhos: "Diariamente, agora, o deus
de faces fogosas dirigia, nu, sua quadriga exalando brasa, pelos espaços
do céu, e seus cachos amarelos esvoaçavam ao sopro do vento
leste." 10
Porém, apesar da sensação de vitalidade transmitida
pelo sol, algo de muito ruim estava em gestação. Aschenbach
começa a notar que nem tudo está bem. Os turistas começam
a deixar Veneza; entre os citadinos circula um burburinho que todos se
esmeram em esconder dos turistas. O "mal" desenvolve-se sorrateiramente.
O cólera.
Aschenbach descobre o mal mas, em sua embriaguez, não pode deixar
Veneza e Tadzio. Espera mesmo que a cidade se esvazie para que fique mais
a vontade com Tadzio. Tem esperança de poder tirar proveito da
catástrofe.
Da mesma forma que a paixão despertada pela perspectiva da guerra
criava um deslumbramento, uma embriaguez, que não permitiam ao
povo alemão vislumbrar o terror que se aproximava e, quando conseguiam
perceber o que os esperava, não davam a devida importância,
consideravam que o preço a pagar era justo.
"Minutos passaram até irem em auxílio do que caíra
de lado na cadeira. Levaram-no para o seu quarto. E, ainda no mesmo dia,
um mundo respeitosamente comovido recebeu a notícia de sua morte."
11
A profecia do barqueiro se cumpriu: "O Senhor pagará"!
A de Thomas Mann, igualmente cumpriu-se.
BIBLIOGRAFIA
ALIGHIERI, Dante. A DIVINA COMÉDIA. In Obras Completas.
Ed. das Américas, SP. ( sem indicação de ano de publicação).
EKSTEINS, Modris. A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA. Rio de Janeiro.
Rocco, 1991;
MANN, Thomas. A MORTE EM VENEZA. São Paulo. Abril Cultural, 1979;
TUCHMAN, Barbara. A TORRE DO ORGULHO. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1990;
NOTAS:
1 Professor da Rede Pública de Ensino
do Rio de Janeiro e Diretor do Sindicato Estadual dos Professores do Rio
de Janeiro
2 Thomas Mann, A Morte em Veneza, págs. 161/162;
3 Barbara Tuchman, A Torre do Orgulho, pág. 423;
4 Tuchman, op. Cit. pág. 461
5 Thomas Mann, Op. cit., pág. 106;
6 Dante Alighieri, A Divina Comédia, O inferno, Canto
III, pág. 69;
7 Thomas Mann, Op. cit. pág. 109. Grifos meus.
8 Idem, Ibidem, pág. 103/4;
9 Idem, Ibidem, pág. 107/8
10 Idem, Ibidem, pág. 131
11 Idem, Ibidem, pág. 170.
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