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"A emoção mais forte e mais antiga do
homem é o medo,
e a espécie mais forte e mais antiga do medo
é o medo do desconhecido "
(H. P. Lovecraft - O Horror Sobrenatural na Literatura)
INTRODUÇÃO
Em seu livro O Horror sobrenatural na literatura, H.
P. Lovecraft, considerado por alguns o mais importante dos sobrenaturalistas
norte-americanos desde Edgar Alan Poe, formulou a estética da história
de horror sobrenatural, ministrando um guia para os interessados no assunto.
Revelou "um pensamento pujante e sutil, agudo senso crítico
e uma percepção de evolução e de meio cultural
que faria inveja a qualquer historiador."2
O autor de O Caso de Charles Dexter Ward afirma que foram os primeiros
instintos e emoções humanas que moldaram a nossa resposta
ao meio que nos envolve. Temos, portanto, sensações definidas,
baseadas em prazer e dor, que são criadas em torno dos fenômenos
cujas causas e efeitos conseguimos entender. Já em torno dos fenômenos
desconhecidos, abundantes no mundo dos primeiros tempos, encontramos as
sensações de assombro, fascínio e medo.
Embora a área do desconhecido venha encolhendo com o passar dos
séculos, um enorme reservatório de mistérios ainda
resta para ser desvendado. Sendo assim, não se admira a popularidade
do terror, seja nas obras literárias, no cinema ou, simplesmente,
nas conversas de acampamento. Desta maneira, o conto de horror vai sobreviver
e evoluir através dos tempos, alcançando "notáveis
culminâncias de aperfeiçoamento, fundado como é num
princípio profundo e elementar cujo apelo, se nem sempre é
universal, deve necessariamente ser pungente e permanente para espíritos
de sensibilidade requerida. A atração do espectral e do
macabro é de modo geral limitada porque exige do leitor uma certa
dose de imaginação e uma capacidade de desligamento da vida
do dia-a-dia."3
Analisando a evolução destes contos, Lovecraft vai chegar
a uma série de brilhantes constatações e conclusões.
Seu livro vai demonstrar claramente a importância da leitura deste
gênero para uma análise das sociedades que o produziram.
É neste contexto que se pretende inserir o livro Contos de Fantasmas
de Daniel Defoe. Estes contos foram retirados de uma obra maior de Defoe
cujo título original é: Tales of Piracy, Crimes and Ghosts,
sendo as partes "True Ghost Stories" e "False Ghosts and
Merry Adventures". Uma divisão curiosa, pois, a não
ser pelo fato de serem inseridas em capítulos diferentes, é
difícil distinguir as "verdadeiras" histórias
de fantasmas daquelas de ficção.
Para simplificar, foi escolhida a primeira parte do livro para uma análise,
dando maior ênfase ao conto A Aparição da Sra. Veal,
o mais conhecido. Não se descarta a possibilidade de um passeio
rápido pelos outros contos de Defoe, inclusive de outras obras,
para uma melhor compreensão do assunto.
DANIEL "THE TRUE-BORN ENGLISHMAN" DEFOE
É considerado por alguns autores, juntamente com Samuel Richardson,
o fundador do romance Inglês. Nascido em Londres, 1660. Seu pai
queria que ele se tornasse pastor, mas Daniel não se interessou.
Sua família era presbiteriana, seita que estava sendo perseguida
naquela época. Freqüentou a Morton's Academy já que
para se formar em Oxford ou Cambridge, era necessário jurar lealdade
à Igreja Inglesa. Embora resolvesse não se tornar pastor,
defendeu os dissidentes. Presenciou tanto a praga quanto o Grande Incêndio
de 1666.
Vai mergulhar na política e no comércio. Por volta de 1680,
foi um comerciante por comissão em Cornhill, mas abriu falência
em 1691. Nunca mais se livrou das dívidas.
Casou-se, em 1684, com Mary Tuffley, com quem teve sete filhos, Juntou-se,
no mesmo ano, ao exército do Duque de Monmouth, que tentava roubar
o trono de Jaime II. Quando falhou a rebelião, foi forçado
a um "semi-exílio". Viajou o continente por três
anos e escreveu perigosos panfletos contra o rei. Ficou muito contente
quando Guilherme de Orange e Mary assumiram o poder, escrevendo em favor
de Guilherme. Apoiou firmemente a Revolução Gloriosa.
Escreveu o poema, The True-Born Englishman em 1701, tornando-se o autor
mais vendido da época. Passou a assinar alguns de seus trabalhos
com este título.
"Wherever God erects a house of prayer,
The Devil always builds a chapel there;
And 'twill be found, upon examination,
The latter has the largest congregation."
(The True-Born Englishman, 1701)
ROBSON CRUSOE(1719) E OUTRAS OBRAS
Com este livro, atingiu a imortalidade literária. Baseado nas memórias
de viajantes e náufragos, particularmente na história de
um sujeito chamado Alexander Selkirk, que saiu ao mar em 1704 e foi deixado
em terra, numa ilha deserta do Pacífico, por vontade própria.
Lá sobreviveu até seu resgate, em 1709. Como jornalista,
Defoe deve ter ouvido falar desta história e possivelmente até
entrevistou Selkirk.
Este livro foi um grande sucesso, principalmente entre as classes mais
baixas. Vale lembrar também a passagem de Robinson Crusoe por aqui,
onde se torna senhor de um "ingenio" e envolve-se no tráfico
de escravos.
"having now lived almost four years in Brazil and beginning to thrive
and prosper very well upon my plantation, I had not only learned the language,
but had contracted acquaintance and friendship among my fellow planters
as well as among the merchants of São Salvador, which was our port
(...)"4
Moll Flanders veio na seqüência. Utilizando
bastante das suas experiências pessoais na prisão Newgate,
acrescenta bastante realismo à obra. Bem mais tarde, este livro
lhe rendeu o título de historiador social. Moll, nascida em Newgate,
onde sua mãe está sob pena de morte, criança abandonada
e educada por uma senhora da nobreza, maltratada, sofrendo desilusão
amorosa e transformando-se em ladra e prostituta, vai finalmente se redimir
e ser recompensada, na colônia americana, onde se transforma em
dama. Cabe aqui a brilhante comparação de Laura de Mello
e Souza, em O Diabo e a terra de Sta. Cruz, da colônia enquanto
purgatório dos pecados cometidos na metrópole.
O público adorava este tipo de publicação e Defoe
vai escrever bastante disso. Trabalhou para um editor chamado Mr. Applebee,
entre 1720 e 1726, que adorava publicar a vida de criminosos condenados.
Ia às prisões para recolher manuscritos e depoimentos dos
próprios condenados, mudava um pouco datas e números, mas
mantinha a essência. Escreveu de tudo um pouco. Assuntos econômicos,
problemas da colonização, até um livro de viagem
chamado A Tour Thro' the whole Island of Great Britain
Foi um dos primeiros a escrever sobre personagens acreditáveis
em situações irreais, usando prosa simples. Empregando a
primeira pessoa na narração, criando uma atmosfera de verdadeiro
diário pessoal, vai dar uma atmosfera realística para seus
romances. Era considerado, já no seu tempo, um jornalista diabólico
e inescrupuloso. Usou diversos pseudônimos, tipo Eye Witness, T.Taylor,
and Andrew Morton, Merchant, mas o mais incomum talvez tenha sido o de
"Heliostrapolis, secretário do Imperador da Lua", usado
em sua sátira política The Consolidator, or Memoirs of Sundry
Transactions from the World in the Moon (1705)
Seus escritos políticos eram muito populares e lhe renderam muitos
inimigos. Uma de suas grandes realizações foi o periódico
A Review of the Affairs of France, and of All Europe (1704-1713). Publicação
inicialmente semanal que, por sua popularidade, passa a ser publicado
três vezes por semana. Já no fim da vida dedicou-se mais
a romances do que a panfletos. Aos 62 anos vai publicar Moll Flanders,
A Journal Of The Plague Year (este, bastante citado por Jean Delumeau
em A História do Medo no Ocidente), e Colonel Jack. Sua última
grande obra em ficção Roxana, é de 1724.
Na década de 20 do século XVII, vai diminuir a controvérsia
política e produzir obras de cunho mais histórico a exemplo
de A Tour Thro The Whole Island Of Great Britain (1724-27, 3 vols.), The
Great law of Subordination Considered (1724), e The Complete English Tradesman
(1726.). Absolutamente versátil, termina os seus dias trabalhando
em obras que envolviam o sobrenatural como The Political History of the
Devil (1726) e An essay on the History and Reality of Apparitions (1727).
Morre em 26 de abril de 1731 em Ropemaker's Alley, Moorfields.
NO PELOURINHO
Vai ao pelourinho em julho de 1703. Seu crime foi escrever o panfleto
The Shortest Way with the Dissenters, sendo ele próprio um dissidente.
Este panfleto fazia várias sugestões ultrajantes para lidar-se
com os dissidentes, especialmente os que praticavam a "conformidade
ocasional" (dissidentes que se tornavam bons membros da Igreja Inglesa,
quando era conveniente. Prática abominada por Defoe). Vendeu bem
e os High Flyers, principal grupo que perseguia os dissidentes, o adoraram
até descobrir que se tratava de uma sátira.
"Actions receive their tincture from the times,
And as they change are virtues made of crimes."
(A Hymn to the Pillory')
Em janeiro, 1703, o "tory" de Nottingham expeliu
um mandado de prisão para Defoe, mas ele só foi preso em
maio. Após sua estada em Newgate, conseguiu resistir às
tentativas de arrancarem dele os segredos de estado que porventura soubesse.
Foi levado a confessar-se culpado e recebeu uma sentença desproporcional
ao seu delito. Multa e prisão lhe pareciam menos terríveis
que as três exposições à humilhação
pública no pelourinho e usou de todos os meios possíveis
para fugir deste castigo. Em vão. Vai então escrever contra
seus perseguidores e contra este instrumento de tortura. Nasce então,
seu impetuoso Hymn to the Pillory.
Não chegou, contudo, a ser um castigo tão terrível
como poderia ter sido. Para sua sorte, quando foi colocado no pelourinho,
o temperamento da instável multidão voltou-se ao seu favor.
Ao invés de vaias e objetos podres, recebeu flores, comida e homenagens.
O povo entoou o seu Hino ao Pelourinho.
Os pelourinhos costumavam ser mais freqüentes nas cidades. Uma lei
de 1405 obrigava todas as cidades e vilas da Inglaterra a possuir troncos
e as maiores perdiam o direito de possuir um mercado, a menos que tivessem
um pelourinho. Uma cidade grande, como Londres, possuía uma série
de pelourinhos em diversos locais e a posse de um pelourinho conferia
status às pequenas vilas. Após 1637, tornou-se o castigo
de quem publicasse livros sem licença ou difamasse o governo. O
mais famoso pelourinho de Londres foi o localizado em Charing Cross. Quando
o povo não concordava com o veredicto da corte, eles transformavam
o evento em uma demonstração de repúdio ao poder
estabelecido. Daniel Defoe, ovacionado e coberto de flores ao chegar em
Charing Cross foi um bom exemplo disso.
O MEDO NO IMAGINÁRIO E NA LITERATURA DO TEMPO
DE DEFOE
Defoe vai dividir os seus contos de acordo com a sua veracidade, entretanto,
aqui faremos a divisão entre a natureza das aparições.
Alguns mortais de seu livro eram assombrados por pessoas mortas, atormentadas,
espíritos "do bem" ou "do mal". Já outras,
mais desafortunadas, recebiam a visita do próprio Diabo.
Em A História do Medo no Ocidente, Jean Delumeau vai explicar que
o medo é natural. Baseando-se um pouco nas suas descrições,
vai ser feita aqui uma tentativa de, através destes contos, analisar
o medo na época em que foram escritos.
Com relação ao medo dos fantasmas em particular, Delumeau
vai classificá-lo na categoria dos medos espontâneos, permanentes,
"ligados a um certo nível técnico e ao instrumental
mental que lhe correspondia."5 Vai ser destacada a grande
influência da religião, principalmente da Igreja Católica,
na difusão destes medos assim como o seu enraizamento na mente
das pessoas e, o quanto à vida e à morte, na mentalidade
coletiva, não estavam rigidamente separadas.
No Século XVII, juristas dissertavam sobre cadáveres que
se põem a sangrar em presença de seus assassinos, denunciando
o culpado. Vemos os casos de mortos julgados e "executados"
e a preocupação dos vivos em mantê-los afastados.
A distinção entre fantasmas e espectros de Pierre de Loya,
presente no livro de Delumeau, também aparece nos contos de Defoe.
Com relação ao protestantismo, temos o exemplo do Ministro
de Zurique, Loys Lavatar que, em obra de 1571, negou qualquer aparição
e obras das almas dos mortos. Fato curioso, tendo em vista a grande importância
que os fantasmas têm nos países protestantes atualmente e
desde muito tempo. Nos EUA, por exemplo, qualquer cidadezinha tem publicado
um guia turístico de seus espectros e fantasmas mais ilustres.
Com o Iluminismo, os homens da Igreja foram levados a desconfiar dos fantasmas
e de suas aparições. Mesmo assim, uma "epidemia"
de medo dos fantasmas e, principalmente dos vampiros, propaga-se no final
do século XVII e começo do século XVIII.
Ilustram bem estes medos as descrições dos rituais feitos
para mandar os mortos definitivamente para seu descanso eterno, assim
como para afastá-los do convívio dos vivos, muito bem detalhados
nos livros de Raymond McNally, João Reis e Montague Summers, entre
outros.6
Passemos a Satã. A figura do Diabo vem fascinando a imaginação
das pessoas através dos séculos, ganhando espaço
na mass media e atingindo o status de uma das personagens mais populares
desde a Renascença até os dias atuais. O Malleus Malleficarum,
por exemplo, teve 34 edições entre 1486 e 1669, ou melhor,
algo em torno de 30 a 50 mil exemplares circulando na Europa. Já
de Fausto, foram 24 edições nos doze últimos anos
do século XVI. Sabemos também do grande medo que os protestantes
desta época sentiam do Diabo.
Mas, foi no começo da Idade Moderna e não na Idade Média
que o inferno e o Diabo mais monopolizaram a imaginação
dos homens ocidentais. O momento em que culminou o medo de Satã
na Europa foi entre a segunda metade do século XVI e o começo
do XVII.
Os traços do terror transcendente podem ser vistos na literatura,
seja oral ou escrita, desde sempre. "Oriente e Ocidente empenharam-se
igualmente em preservar e amplificar a herança tenebrosa, quer
do folclore disperso quer da magia e do ocultismo academicamente formulados,
que lhes fora transmitida. Bruxas, vampiros, lobisomens e duendes incubaram
ominosamente na tradição oral dos menestréis e das
vovós, e não precisaram muita incitação para,
num passo final, transporem a fronteira que divide a ode e a cantiga da
literatura formal."7
Os cultos de adoradores noturnos, cultos aos mortos, ritos de fertilidade
de eras imemoriais, bem analisados pelos livros de Carlo Ginzburg, deram
forma e força ao fabulário ocidental de horror. Assim, a
literatura macabra vai tomando forma, seja, inicialmente, em versos ou
em prosa. Muitos podem ser citados nesse processo, desde o Livro dos Mortos,
tanto o Egípcio quanto o Tibetano, os grimórios, como a
La Clavicule de Salomon e Le Grimoire du Pope Honorius, os manuais como
o Malleus Malleficarum, nos escritos dos alquimistas e dos magos como
Cornélio Agripa, Eliphas Levi ou Alester Crowley, na literatura,
etc.
Mas, vamos direto ao século XVII. Rivalidades políticas
e conflitos religiosos combinaram-se para fazer do fim do século
XVI e do início do XVII "a idade das guerras religiosas".
Foi o tempo, tanto de conflitos internos como de batalhas entre nações.
Católicos e protestantes lutaram na França, na Holanda e
na Inglaterra. As monarquias católicas da França e da Espanha
atacaram os regimes protestantes. Por fim, grandes nações
da Europa foram envolvidas num conflito que devastou a Alemanha, a Guerra
dos Trinta Anos (1618 -1648). Neste século, assim como no começo
do seguinte, temos uma grande massa de lendas e baladas de cunho místico.
No tempo de Daniel Defoe, os folhetins de horror e assombração
proliferavam, fato que demonstra o grande interesse popular por textos
do tipo A Aparição da Sra. Veal. O próprio Lovecraft
utiliza-se deste conto enquanto exemplo de sua época, afirmando
que este era um "relato prosaico da visita espectral de uma morta
a uma amiga distante, escrito para, disfarçadamente, promover uma
dissertação teológica sobre a morte."8
Neste século também estavam bastante em voga os ensinamentos
da fraternidade mística Rosa-Cruz.
O auge deste gênero literário, contudo, vai dar-se apenas
em fins do século XVIII e começo do XIX com a escola gótica,
em grandes obras como Dracula de Bram Stoker, Frankenstein, Or the Modern
Prometheus de Mary Shelley, Carmilla de J. S. LeFanu, entre outras tantas.
OS CONTOS
" I must tell you, good people, he that is not able
to see the devil, in whatever shape he is pleased to
appear in, he is not qualified to live in this world,
no, not in the quality of a common inhabitant"
(The friendly Demon/ Irish Tales of Terror - Daniel Defoe )9
"Este relato é verdadeiro e cercado por muitas
circunstâncias que podem induzir qualquer homem sensato a acreditar
nele."10 Assim começa o conto que vai, através
da história de uma amiga que visita a outra - para, depois de morta,
resolver assuntos que deixou pendentes, assim como tentar corrigir injustiças
cometidas em vida - , comprovar o quanto era tênue a linha que dividia
vivos e mortos e o quanto estes estavam presentes no imaginário
das pessoas daquela época.
Outro fator interessante é o de demonstrar o quanto o dissidente
Defoe, no final de sua vida, vai voltar-se para crenças mais esotéricas.
Difícil mesmo é compreender realmente o que se passava na
cabeça deste escritor tão singular. A Aparição...
traz um Defoe extremamente piedoso e temente a Deus. Esta grande reverência
a Deus está muito explícita nos momentos de arrependimento
e devoção de Robinson Crusoe em sua ilha.
Calvino defendia que as leis divinas deviam ser religiosamente obedecidas,
que a retidão moral, assim como a social, devia ser buscada com
perseverança. Com relação à vida política,
dizia que esta deveria ser cuidadosamente regulamentada, ao passo que
as emoções humanas deveriam ser controladas com rigor. Muitos
dos princípios reformistas podem ser encontrados enquanto uma certa
moralité dos contos de Defoe, como a critica doutrinal à
Igreja, a idéia de que a justiça de Deus só pode
ser alcançada através da fé, o dogma cristão
da onisciência divina, etc. Mas, seria apressada uma análise
apenas sob este ponto de vista. Fica clara também, em diversos
pontos, a influência de outras formas de crenças menos ortodoxas.
"O proveito que podemos tirar desse documento é ter em mente
que há uma vida por vir depois desta e um Deus justo que retribuirá
a cada um segundo os atos feitos com este corpo atual; devemos, portanto,
refletir no que tem sido a nossa vida; não esquecer de que o tempo
de que dispomos é curto e incerto e que, se quisermos escapar à
punição reservada aos ímpios e alcançar a
recompensa dos que procedem bem, que é a vida eterna, temos que,
no tempo que nos resta, voltar a Deus por um rápido arrependimento,
deixando de cometer o mal e aprendendo a fazer o bem, partindo em busca
de Deus, se com felicidade Ele possa ser de nós encontrado, e de
levar tais vidas no futuro que Lhe possam ser agradáveis".
11
Os livros lidos pelos personagens muitas vezes se revelam indicativos
das preferências literárias do autor e até mesmo de
seu caráter e personalidade. Temos um bom exemplo disso em Frankenstein,
onde a criatura de Mary Shelley, ao aprender a ler, escolhe justamente
o Paraíso Perdido de Milton e Os sofrimentos do jovem Werther,
de Goethe, livros que se sabe muito caros à própria Mary.
12 No caso do conto, Defoe, através do espectro da Sra.
Veal, vai chamar a atenção insistentemente para a importância
do "Livro de Dreligcourt" sobre a morte, classificando-o como
o melhor dos livros sobre o assunto. Temos também a pista de outros
livros, como o "Livro do Dr. Hoerneck" sobre o ascetismo, que
contém relatos sobre a vida dos cristãos primitivos e que
vai ser recomendado pela defunta enquanto exemplo a ser seguido. Podemos
concluir então, que as senhoras, assim como Daniel Defoe, liam
bastante sobre o tema.
Os outros contos podem ser ilustrativos do pensamento religioso do autor.
Em o Fantasma em todos os cômodos, é a avareza de um padre
que vai colocar a vida do mordomo em perigo. O Espectro e o Salteador
vai demonstrar a origem da expressão "treze pence e meio é
o soldo do carrasco" bem como nos trazer uma visão dos costumes
e das punições da época. Prova de que a fé
é suficiente para vencer até o demônio está
em O Diabo brinca com um mordomo. "No entanto, sendo um bom cristão,
ele se mostrou excessivamente forte para o Diabo, e resgatou o mordomo
dentre as mãos dos espíritos, trazendo-o de volta para os
seus amigos." 13 Neste conto, vai falar de um senhor Geatrix,
restaurador de pessoas enfeitiçadas, mas que "sabia, como
se pode supor, como tratar o Diabo tão bem quanto qualquer outra
pessoa" 14 . Nem os bispos, médicos ou curandeiros
poderiam ajudar o pobre mordomo atormentado por duendes e espectros. Entretanto,
se ele tivesse se comportado bem na juventude e dito as suas preces como
convém, nada de mal lhe teria acontecido. Cada um dos contos pode
ser utilizado para uma análise deste tipo.
Em resumo, Defoe foi um homem do seu tempo, dissidente, ainda sofrendo
a influência da Reforma e da moral protestante, mas, mesmo assim,
vivendo em um mundo povoado de mistérios inexplicáveis e
cheio de soluções mágicas e sobrenaturais para eles.
BIBLIOGRAFIA
CROWRHER, Jonathan (editor). Oxford Guide to British
and American Culture, Oxford University Press, New York, 2000, 600p
DEFOE, Daniel. Contos de Fantasmas. Porto Alegre, L&PM, 1999, 136p
DEFOE, Daniel. Robinson Crusoe. London, Penguin Popular Classics, 1994,
298p.
DELUMEAU, Jean. A história do medo no Ocidente, 1300-1800, uma
cidade sitiada. S. Paulo, Companhia das Letras, 1989, 471p
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes : o cotidiano e as idéias
de um moleiro perseguido pela inquisição. Companhia das
Letras, São Paulo, 1987
GINZBURG, Carlo. História Noturna : decifrando o Sabá. São
Paulo, Companhia das letras, 1989. 406 p.
HAININGS, Peters. Irish Tales of Terror. New Jersey, Wings,1970. 317p
LOVECRAFT, Howard Philips. O Horror Sobrenatural na Literatura. R. J.,
livraria Francisco Alves, 1987, 115p
LYONS, Arthur. Culto a Satã. São Paulo, Hemus, 1970. 147
p
NOGUEIRA, Carlos Alberto F. O Diabo no imaginário Cristão.
S.Paulo, Ática, 1986, 93p
MCNALLY, Raymond & FLORESCU, Radu. In search of Dracula: the History
of Dracula and vampires. Houghton Mifflin. 1994. 297 p.
REIS, João José. A Morte é uma Festa. São
Paulo, Companhia das Letras, 1991, 357p
SHELLEY, Mary. Frankenstein, Or the Modern Prometheus (1818). New York,
Annes Publishing Limited, 183p
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Sta. Cruz. São Paulo,
Companhia das Letras, 1995. 396 p
SUMMERS, Montague. The Vampire in Europe. New York, Random, 1996,. 329p
NOTAS:
1 Aluna do curso de Licenciatura em História
da UFBA
2 BLEILER, E.F.. In O Horror Sobrenatural na Literatura. R.
J., livraria Francisco Alves, 1987 p.1 (prefácio)
3 LOVECRAFT, Howard Philips. O Horror Sobrenatural na Literatura.
R. J., livraria Francisco Alves, 1987 p.1
4 DEFOE, Daniel. Robinson Crusoe. London, Penguin Popular Classics,
1994. p. 38
5 DELUMEAU, Jean. História de Medo no Ocidente: 1300
- 1800, uma cidade sitiada. São Paulo, Companhia das Letras, 1989,
p. 31
6 REIS, João José. A Morte é uma Festa.
São Paulo, Companhia das Letras, 1991, 357p
SUMMERS, Montague. The Vampire in Europe. New York, Random, 1996,. 329p
MCNALLY, Raymond & FLORESCU, Radu. In search of Dracula: the History
of Dracula and vampires. Houghton Mifflin. 1994. 297 p.
7 LOVECRAFT, Howard Philips. O Horror Sobrenatural na Literatura.
R.J., livraria Francisco Alves, 1987 p.8
8 LOVECRAFT, Howard Philips. O Horror Sobrenatural na Literatura.
R.J., livraria Francisco Alves, 1987 p.25
9 DAFOE, Daniel. The Friendly Demon, In. Haining Peter. Irish
Tales of Terror. New Jersey, Wings Books, 1970. p.35
10 DEFOE, Daniel. Contos de Fantasmas. Porto Alegre, L&PM,
1999, p. 9
11 Idem, p. 10
12 SHELLEY, Mary. Frankenstein, Or the Modern Prometheus (1818).
New York, Annes Publishing Limited, P.110
13 DEFOE, Daniel. Contos de Fantasmas. Porto Alegre, L&PM,
1999, P. 86
14 DEFOE, Daniel. Contos de Fantasmas. Porto Alegre, L&PM,
1999, P. 87
Links:
http://www.incompetech.com/authors/defoe/
http://www.bartleby.com/219/0115.html
http://www.rm-r.net/~getch/punishments/curious/chapter-4.html
http://www.pcmp.caltech.edu/~tobi/alex/alex.html
http://www.geocities.com/WestHollywood/Heights/9417/
Algumas Obras de Daniel Defoe:
· AN ESSAY UPON PROJECTS, 1697
· THE TRUE-BORN ENGLISHMAN, 1701
· THE SHORTEST-WAY WITH THE DISSENTERS, 1702
· THE CONSOLIDATOR, 1705
· THE FAMILY INSTRUCTOR, 1715
· ROBINSON CRUSOE, 1719 ( Diversas adaptações para
o cinema, incluisive uma de Luis Buñuel, de 1953
· THE FARTHER ADVENTURES OF ROBINSON CRUSOE, 1719
· MEMOIRS OF A CAVALIER, 1720
· THE LIFE, ADVENTURES, AND PIRACIES OF THE FAMOUS CAPTAIN SINGLETON,
1720
· THE FORTUNES AND MISFORTUNES OF THE FAMOUS MOLL FLANDERS, 1722
· A JOURNAL OF THE PLAGUE YEAR, 1722
· COLONEL JACK, 1722
· ROXANA, 1724 .
· TOUR THROUGH THE WHOLE ISLAND OF GREAT BRITAIN, 1724-26
· THE COMPLETE ENGLISH TRADESMAN, 1725-27
· THE POLITICAL HISTORY OF THE DEVIL, 1726
· AN ESSAY ON THE HISTORY AND REALITY OF APPARITIONS, 1727
· THE SHORTEST WAY WITH THE DISSENTERS AND OTHER PAMPHLETS, 1927
· A REVIEW OF THE AFFAIRS OF FRANCE, AND ALL EUROPE, 1938 (22 vols.)
· SELECTED POETRY AND PROSE, 1968
· SELECTED WRITINGS, 1975
· 'THE MANUFACTURER' (1719-1721); TOGETHER WITH RELATED ISSUES
OF 'THE BRITISH MERCHANT' AND 'THE WEAVER', 1978
· THE VERSATILE DEFOE, 1979
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