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AS MULHERES NA "REVOLTA DOS RESIGUINADOS":
A GREVE DOS PROFESSORES MUNICIPAIS EM 19181

Ana Alice Alcantara Costa2
Hélida Conceição3



Reconstruir a história da participação das mulheres nas lutas políticas não tem sido tarefa fácil. As perspectivas androcêntricas da Ciência Política e da História constituíram-se em verdadeiras barreiras à visibilidade das mulheres, na medida que ao se limitarem a modelos e conceitos tradicionais de participação ou a identificarem sujeitos coletivos assexuados fundamentados em arquétipos viris, mantiveram as mulheres à margem da historiografia.
Hoje sabemos, graças às pesquisas mais recentes, que as mulheres não eram inativas ou que estiveram ausentes dos acontecimentos históricos, o que houve foi uma omissão sistemática das mulheres nos registros oficiais. "A história do desenvolvimento da sociedade humana foi narrada quase sempre pelos homens e a identificação dos homens com a 'humanidade' tem tido como resultado, quase sempre, o desaparecimento das mulheres dos registros do passado."4
Nesse sentido, este artigo tem por objetivo construir a visibilidade feminina nos eventos da greve dos professores municipais de Salvador de 1918. Um movimento que tem despertado pouco interesse por parte dos estudiosos do período e mesmo estes raros estudos não conseguem identificar as especificidades de um movimento realizado por uma categoria profissional essencialmente feminina.
Nesse sentido, a partir da perspectiva dos estudos de gênero, faremos uma retomada dos fatos e acontecimentos, avaliando em termos políticos e sociais, seu significado para a sociedade baiana. Desta forma analisaremos como foram implementadas as ações grevistas, as principais demandas, seus lideres, suas conquistas e especificidades, ressaltando a forma distinta de relação das mulheres com o movimento.
Para tanto, recorreremos não só aos estudos já realizados sobre a greve, mas em especial nos debruçaremos sobre os principais jornais do período, em especial as cartas enviadas pelas professoras aí publicadas, na busca de um novo ângulo de análise. Como diz Perrot, "enfocar as fontes tradicionais desde um ângulo diferente é, sem dúvida, o primeiro passo"5 para construir a historiografia das mulheres.
Vale explicitar que entendemos as mulheres como um produto histórico, fruto de sua época, das relações de classe e etnia que vivenciam. Desse modo, entendemos, como afirma Escadon, que a cultura e todo o universo simbólico, a vida social, as instituições, os costumes, em fim a história é o que constitui através do tempo a diferença entre os gêneros. Daí resulta que enquanto o sexo é um mero atributo biológico específico, gênero é a construção de formas culturais consideradas como apropriadas para o comportamento de indivíduos do sexo feminino ou masculino, constituindo assim a diferença sexual. Nesse sentido a diferença sexual é um produto da cultura, um hábito social que se consolida através do tempo6 .
A Bahia dessa época caracterizava-se, assim como o Brasil, por uma economia dependente fundamentada no capital agro-exportador. A República, em seu processo de consolidação, não tinha ainda conseguido alterar as velhas relações de poder, os sistemas de privilégios. A estabilidade política do país era conseguida pelo apoio incondicional do governo federal ao grupo político local dominante em troca da submissão dessas oligarquias locais a esse poder central.
Salvador, a capital do Estado, podia ser caracterizada por um lento crescimento urbano, orientado pelos grupos comerciais que detinham o controle imobiliário, associados muitas vezes ao grupo político que estava no poder. As altas de preços, a falta de abastecimento, as condições precárias de saúde pública e, sobretudo o desemprego acentuavam as crises e tensões sociais desenvolvidas a partir das contradições do cotidiano e da carestia de vida.
Em 1920, Salvador possuía 283.422 habitantes, dentre os quais 151.294 mulheres. Segundo dados estatísticos analisados por ALMEIDA7 nesse período a população feminina estava assim distribuída: 1% na agricultura e pecuária; 17% estavam na indústria sendo que a maior concentração de operárias se dava na indústria de vestuário e tocador (85% da mão de obra); 3% no setor terciário (transporte, comércio, força pública, administração, profissões liberais e em especial no magistério); 8,5% no serviço doméstico e 70% em profissões mal definidas8 .Apenas 52% das mulheres sabiam ler e escrever, para os homens o percentual era de 60% nesse mesmo período.
O censo de 1920 apontava ainda que as mulheres ocupavam 73,3% do magistério, sendo que na área do ensino municipal de Salvador as mulheres representavam 81,73% do corpo docente. Essa, aliás, era a profissão considerada mais adequada para as mulheres em perfeita sintonia com os estereótipos femininos dominantes e todos os limites impostos por uma moral patriarcal. Da professora exigia-se uma conduta moral rígida e extensiva a toda sua família.
O contraponto para a rigidez e o controle moral exercidos sobre as professoras eram os atrasos nos já baixos salários, as péssimas condições de ensino e trabalho. Nos jornais do período são constantes as denúncias de professoras sobre seu estado de miséria e abandono9 chegando a ficar 18 meses sem salários e entregues a própria miséria. O atraso nos salários era uma prática corrente herdada do Império. A Republica apesar das importantes modificações na estrutura do ensino não trouxe mudanças significativas ao exercício do magistério. Exemplo dessa prática é o orçamento do Estado para o ano de 1914, onde para a polícia estava reservado 2.519:529$800 (dois mil e mais de quinhentos contos) e para a instrução primária apenas 1.284:000$00010 .
Não podemos esquecer que a entrada massiva de mulheres no magistério veio acompanhada de um processo crescente de desvalorização salarial e de perda de prestigio. Essa é uma prática comum em todas as profissões que passam por um processo de feminização. Certamente o descaso com as condições de trabalho, os baixos salários e os constantes atrasos no pagamento estavam vinculados a uma ideologia patriarcal que via e tratava o trabalho feminino como complementar.
Não obstante as limitações, discriminações e impedimentos, essa inserção na força de trabalho era ainda uma das poucas possibilidades de atuação no espaço público possível para as mulheres de classe média. Segundo Ferreira Filho, Salvador era extremamente hostil a participação das mulheres da elite no mercado de trabalho. O trabalho feminino era a denuncia das dificuldades financeiras que a família estaria vivendo.
"O ócio ou a eterna espera dos maridos determinava a vida de muitas mulheres, que, apesar da sedução das ruas, mantinham-se reclusas no interior dos lares, sendo mal vistas quando permaneciam por muito tempo nas janelas."11
No âmbito do exercício da cidadania, as mulheres estavam totalmente cerceadas dos direitos civis e as lutas reivindicativas do movimento feminista internacional recém apareciam na imprensa baiana, sempre sob uma forma crítica e pejorativa alertando as baianas para os "perigos" de uma emancipação das mulheres12 .
Excluídas dos espaços de representação política, as mulheres tinham poucas possibilidades de intervir na definição das diretrizes orçamentárias ou mesmo na definição de políticas educacionais. A luta pelo direito ao voto vinha arrastando-se desde inicio do século XIX liderada por mulheres letradas e de elite sem conseguir mobilizar a maioria da população feminina e sem muitas possibilidades de vitória. O fato das mulheres não fazerem parte do eleitorado baiano era tido, inclusive, como uma das justificativas para o descaso governamental em relação ao professorado, conforme podemos verificar na nota a seguir, publicada no Diário da Bahia:
"À parte as melgueiras em que não lavas as lampas ao actual intendente, o sr. Pacheco Mendes, escolheu para espelho do seu descriterio, e desonestidade administrativa, o professorado municipal, classe esta que, por ser constituida em sua maior parte, por senhoras, e não ter expressão eleitoral, nem interferência na administração, nenhum apreço merece dos parasitas e pobretões que entre nós, transformaram a administração publica em meio de vida e industria de poder."13
Não obstante essa exclusão feminina dos mecanismos formais de participação política, a mobilização dos professores municipais que culminou com a deflagração da greve janeiro de 1918, foi o exemplo de combatividade das mulheres e ao mesmo tempo a confirmação da necessidade de redefinir o conceito de participação política ou mesmo as afirmações de que as mulheres sempre estiveram à margem da história, afinal, não podemos esquecer que o atual conceito de política foi construído historicamente a pa rtir das teorias do "contrato social" fundamentadas na exclusão das mulheres, relegando-as ao mundo do privado.14
As reivindicações por melhores salários e contra o atraso nos pagamentos vinham se arrastando por muitos anos. Maria da Conceição Silva retrata muito bem em seu trabalho a longa luta travada pelo professorado municipal em busca de melhores condições salariais nos trinta primeiros anos da República15 . A partir de 1915 a situação econômica dos professores agravava-se, muitos deles, num ato desesperador, abandonavam as salas de aula e passavam dias inteiros na Intendência e no Tesouro Municipal em busca de seus salários 16 .
Sem muitas alternativas, os professores procuraram, em um primeiro momento, a via legal para garantir seus salários. Em setembro de 1916 o professorado municipal reunido sob a presidência do professor Francellino de Andrade, delegado escolar, secretariado pelos professores Hugo Balthazar da Silveira e Maria Olympia Rabello contrataram o Dr. Migdonio de Oliveira, um advogado, para pleitear junto aos tribunais competentes, a garantia de verbas para a instrução, conforme o garantido pela Constituição17 .
Porém, a situação da categoria não é resolvida. Diante das dificuldades financeiras e do descaso governamental, em janeiro de 1918 os professores decidem pelo não reinicio das aulas. No dia 29 de janeiro os professores lançam o Manifesto do Professorado Público Municipal do Estado da Bahia ao Povo Brasileiro18 , conclamando todos para a greve.
Com a publicação do manifesto, o movimento ganhou força, vários professores de renome aderem ao movimento. Imediatamente o movimento ganha a simpatia da população.
Na primeira quinzena de fevereiro de 1918, o professor Isauro Coelho foi suspenso de suas atividades docentes pelo intendente Propício da Fontoura, "em vista de ter clamado contra a fome a que se acha reduzida sua classe".Vários professores manifestaram-se através da imprensa contra tal arbitrariedade. Destaca-se a carta de Emilia de Oliveira Lobo Vianna, professora de uma escola feminina na rua do Paço, segunda maior escola do Município, pela veemência do ataque contra o intendente19 .
Outros professores demonstraram seu protesto pedindo a substituição e declarando-se em greve, assim o fez Jovina Castro Senna Moreira, proprietária da cadeira do sexo feminino de Castro Neves, reafirmando sua "solidaria in totum com o professor Isauro Coelho, arbitrariamente suspenso de suas funcções"20 . Esse ato de arbitrariedade provocou um acirramento da greve com a adesão de outros importantes professores: Severiano Salles Filho; Antonio Peixoto Guedes; Anthenor Dantas Simões; Antonio Azevedo; D. Eluisina de Mattos Lemos da escola da Conceição da Praia; D. Maria do Carmo Trindade Soares, da escola do Baluarte.
Através dos jornais os professores são convocados para as reuniões da categoria, as dependências do Liceu de Artes e Oficio transformam-se no pólo aglutinador. Na Comissão de Convocação do movimento, composta por 14 professores, destacam-se 04 mulheres: Jovina de Castro Senna Moreira; Anna Moreira Bahiense; Jesuina Beatriz de Oliveira; Emilia de Oliveira Lobo Vianna.
Assim, as mulheres vão tendo um papel significativo na condução do movimento grevista conforme podemos ver na composição da estruturação da coordenação do movimento aprovada na reunião de 19 de fevereiro. A Comissão Central da Greve foi constituída pelos professores: Possidônio Dias Coelho, Jacyntho Caraúna, Cincinato Franca, Vicente Café, Dasio Silva, Hugo Balthazar da Silveira, Antonio Guedes, Severiano Salles Filho, Jovina Senna Moreira, Alberto de Assis, A. Dantas Simões, Emília de Oliveira Lobo Vianna, Anna Moreira Bahiense, Jesuina de Oliveira e Sidônia Alcântara. Para a Comissão de recepção foram indicadas as professoras Laura Baraúna, Stela Lemos, Amélia Bahia, Maria Amélia Rabelo, Augusta Franca Neves e Laura Cardoso21 .
Essa foi uma reunião muito concorrida, registrando-se a presença de muitas professoras, segundo lista de presença publicada no Diário da Bahia, participaram dessa reunião 46 professoras e 9 professores, "... na sua maioria constituída de virtuosas senhoras e de cujo elemento masculino não se conhecem manifestações e costumes politiqueiros..."22
O espaço de participação das mulheres no movimento do professorado apresenta-se de forma marcante, tanto no plano real quanto no simbólico. Ambos coexistem em uma esfera maior da representação social e política expressa durante a greve, na tentativa de inserção da voz feminina nos assuntos de ordem pública. As mulheres rompem as barreiras do espaço doméstico para estarem na linha de frente da condução da greve.
Esse é um dos principais destaques dessa mobilização. Ao contrario dos vários movimentos grevistas desse período, - em especial do operariado têxtil, onde as mulheres embora fossem a maioria absoluta da mão de obra empregada, as mobilizações são conduzidas pelos homens - as professoras assumem a dianteira do movimento, participando ativamente das instancias deliberativas, assumindo a condução das comissões de trabalho, participando das audiências publicas e das mesas de negociações com a intendência.
A greve dos professores traz também a publico uma outra forma de luta que podemos assim dizer, tipicamente feminina, as cartas. Historicamente, fazer cartas, tem sido a forma de manifestação privada das mulheres. Excluídas durante séculos das esferas de participação, as mulheres recorriam as cartas, mesmo que em âmbitos restritos, para manifestarem seus desejos, sonhos aspirações, sofrimentos, relatarem vivencias familiares, experiências do cotidiano e são exatamente estas cartas que Perrot aponta como importantes fontes de construção da historiografia das mulheres23 .
Na greve de professores da Bahia, as cartas eram as armas mais utilizadas pelas mulheres na denuncia das suas condições de miséria por conta da política salarial da Intendência. Rompiam a intimidade do privado tornando publica através dos jornais baianos, as dificuldades financeiras que estavam passando, transgrediam os costumes locais ao publicisarem que estavam sob ordem de despejos, que já não tinham mais como pagar o aluguel ou sustentar a família. Era, sobretudo através de cartas na imprensa que estas professoras registravam seus protestos, destilavam críticas ao governo municipal, mostravam-se solidárias as reivindicações e manifestavam suas adesões ao movimento e principalmente conclamavam as colegas a aderirem ao movimento.
A professora Sra. Jovina de Castro Senna Moreira, há onze anos dedicada ao ensino primário na escola do sexo feminino de Castro Neves, em uma carta ao jornal A Tarde, afirma:
"Estou, conforme officiei a quem de direito, solidaria com o meu distincto collega, toda a classe e dirijo-me às minhas distinctas collegas para que não abandonem a occasião que Deus nos proporcionou de libertamo-nos da tirania que nos opprime."24
A conclamação da professora expressa na sua carta, constitui um elemento importante de reconhecimento da predominância feminina na categoria e na condução do movimento. Tal conclamação possibilita também o entendimento de que Jovina não se referia apenas aos exploradores da sua força de trabalho, mas em um sentido mais amplo, que envolve o próprio papel feminino, isto é, o movimento poderia representar também um instrumento de liberação feminina contra a "tirania que nos opprime". Afinal, acreditamos que estas mulheres que estavam à frente do movimento eram conhecedoras de todas as dificuldades de mobilização de uma categoria essencialmente feminina e o ônus pago pelas mulheres que transgrediam aos papéis e modelos estabelecidos.
Estas cartas eram também um instrumento de busca do apoio popular, uma característica que o movimento soube garantir, em especial através da imprensa. A condição de penúria em que os professores estavam vivendo nos últimos anos era de conhecimento geral da população, tal situação contrapunha-se ao grau de prestigio e respeitabilidade que a categoria ainda detinha, principalmente as mulheres, identificadas com a maternidade e a afetividade. "Somos uma classe soffredora, oprimida e perseguida, mas altiva e insubmissa, confiante no apoio da população bahiana, para que as iniquilidades sejam eficazmente combatidas."25
De fato, identifica-se claramente nos jornais da cidade daquele período, uma tentativa de sensibilização geral da sociedade, em prol das reivindicações dos grevistas. Esta preocupação revela-se na produção de um discurso alinhado às questões sociais, políticas, orçamentárias e também morais. O próprio Rui Barbosa, grande líder oposicionista, em defesa da categoria denominou a greve, como a "Revolta dos Resignados"26 .
Ferem, a conjuntura dessa greve, não pode ser explicada sem o entendimento mais amplo da situação de crise na qual se encontrava o poder municipal. De fato a Intendência neste momento encontrava-se em uma situação de déficit de suas finanças, implicando em atraso salarial dos servidores públicos, que se viam penalizados pelos cortes nas despesas que incidia diretamente nos seus salários. É neste contexto que, segundo avaliação de Santos: "A greve surge, então, como reação espontânea com um objetivo imediato. Não se descarta, todavia, a possibilidade de uma influência reflexa da maré montante de reivindicações do trabalho."27
Por outro lado, no contexto dos movimentos grevistas das duas primeiras décadas do século XX, especialmente a partir de 1917, merece destaque a penetração social das idéias anarquistas, socialistas e comunistas, entre os setores operários urbanos. Mesmo sem uma interferência conseqüente, estas idéias tiveram alguma repercussão num "ambiente de efervescência ideológica e inquietação social."28
No caso específico da greve do professorado baiano, torna-se impossível detectar o grau de influência desta idéias, já que o movimento tinha como objetivos específicos e imediatos, receber os salários atrasados e manifestar suas insatisfações para com a Intendência municipal. Por outro lado, não obstante juntarem-se a outras categorias profissionais durante as manifestações grevistas de 1919, os professores seguiam sendo uma categoria diferenciada, com muito prestígio e "orgulhosos do seu status de funcionário público" conforme afirma Sampaio:
"É interessante observar que, durante a greve geral de 1919, várias facções desse segmento (professores de escolas públicas, funcionários públicos menores, telefonistas etc) juntaram-se ao proletariado em reivindicações por melhores salários e por gêneros alimentícios mais baratos. Contudo, orgulhosos do seu 'status' de funcionário público, os integrantes desse segmento não se identificavam com o proletariado" 29 .
Cabe registrar a nota oficial emitida pela Intendência no Diário da Bahia, onde qualifica a ação dos grevistas, por ocasião do requerimento da professora Beatriz Carneiro, que reclamava o pagamento dos atrasados de julho a dezembro de 1918.
"O caso da Peticionaria é um dos muitos decorrentes daquelle sopro de anarchia que, entregando-se a nobre classe do ensino primario ao estado de indisciplina, fell-a constituir-se em greve por espaços de muitos mezes sem direito a vencimentos..."30
De modo geral o combate oficial contra as expressões de insatisfação de uma classe, incluindo os movimentos grevistas, eram tomados por 'anarquismo'31 Anarquista era um nome a ser empregado para designar socialistas, anarquistas, comunistas ou todo aquele que perturbasse a ordem pública.
Os protestos do professorado municipal tornam-se um indicativo revelador da situação política na Bahia, durante o período do governo de Antonio Moniz eleito, pelas mãos fortes de J.J. Seabra, que continuava exercendo sua hegemonia política. No ano de 1917 o acirramento da crise econômica e social na Bahia, aumentou as tensões entre o governo estadual e a oposição. Os efeitos da 1ª Guerra Mundial faziam-se sentir no aumento do custo de vida da população e na falta de suprimentos e produtos básicos para a sobrevivência. Diante desta conjuntura a população não poupava os poderes públicos com suas queixas e indignação face à incapacidade de Antonio Moniz para lidar com a situação. Na esteira destes acontecimentos, a oposição mostrava-se cada vez mais disposta a acirrar o descontentamento popular contra os políticos do partido situacionista.
Nestas circunstâncias a greve dos professores torna-se um movimento aglutinador dos setores descontentes. Às reuniões e assembléia realizadas no Lyceu de Artes e Ofícios comparecem representantes de diversos segmentos urbanos, demonstrando as adesões que engrossavam o movimento. O Diário da Bahia noticia uma reunião ocorrida no Lyceu em 19 de fevereiro de 1918, na qual constata-se a dimensão alcançada pelo movimento do professorado, entre as classes dos profissionais liberais:
"Nem outro devera ter sido o sentimento daquella assistencia vultuosa em meio a qual se viu dignissimos professores do ensino secundário, superior, médicos, advogados, negociantes, industriaes, jornalistas, artistas, altos funccionarios publicos, operários, tocados do mesmo enthusiasmo, applaudindo com expressivas orações, os professores nas pessoas dos que terçavam pela palavra, em defesa da classe."32
Essa característica de aglutinador dos setores descontentes com a hegemonia Seabrista será determinante na decisão da comissão central dos professores que com a justificativa de resolver o impasse instaurado entre o movimento grevista e o poder municipal, resolve recorrer ao presidente da República Dr. Wenceslau Brás, solicitando a intervenção do governo federal. O jornal carioca A Época, noticia a repercussão do movimento na capital da República:
"A situação do professorado bahiano chegou a tal estado de penúria... que se viu na necessidade de apellar para a generosidade publica fazendo bando precatorios e depois para o auxilio e prestigio da colonia bahiana aqui residente, pedindo a sua intervenção junto aos poderes federais."33
O governo federal decide então intervir no caso e autoriza o Banco do Brasil a conceder um empréstimo de mil e quinhentos contos de réis à municipalidade baiana, para que possa saldar em grande parte, os salários atrasados dos professores. Face esta iniciativa, o DR.J.J. Seabra considera inoportuna a intervenção da União nos assuntos do estado34 .
A reação do professorado foi imediata, na medida em que ficou clara a intolerância do governo estadual e o posicionamento intransigente das forças seabristas, face às reivindicações da classe. Nos jornais aparecem referências como a "Asa Negra do Dr. Seabra"35 , uma alusão clara da forte oposição que vinha ensaiando seus ataques contra as forças situacionistas. Diante do impasse a maioria das escolas municipais seguia fechada.
Em abril de 18 foi criado o Centro de Defesa do Professorado Primario Bahiano, sendo eleita a seguinte diretoria: Possidônio Dias Coelho (Presidente); Sidônia Gonsalves de Oliveira Alcântara (1º vice-presidente); Maria Athayde da Cunha Baleeiro (2º vice-presidente); Appollonio José do Espirito Santo (1º secretario); Antonio Sallustino Ferreira de Azevedo (2ºsecretario); Anna Moreira Bahiense (Tesoureira). Emília de Oliveira Lobo Vianna, Jesuina Beatriz de Oliveira, Aureliana Paula da Cunha foram eleitas vogais e Maria Flora Teitosa (sic.), Julia Lordello e Amélia Bahia faziam parte da Comissão de Contas, os outros cargos foram preenchidos pelos homens36 .
Em agosto o novo intendente José da Rocha Leal, comunica ao Conselho Municipal que autorizou o pagamento aos professores, de forma escalonada, a começar pelos salários mais atrasados, em função da pouca disponibilidade de recursos. O intendente comunicava ainda, estar tendo dificuldades em pagar os meses a partir de janeiro, por estarem os professores em greve. Nessa mesma seção do Conselho Municipal foi comunicado o cancelamento da portaria que havia suspendido o Prof. Isauro Coelho em fevereiro.
Em fins de setembro, com os salários sendo regularizados, a greve começa a perder força, mesmo assim, essa foi a mais longa greve do funcionalismo público baiano durante a Primeira Republica e a primeira onde as mulheres têm um papel de destaque na sua condução.
Apesar das conquistas da greve, a precariedade do ensino público na Bahia não será resolvida e o ano de 19 é marcado pela presença constante das professoras nos jornais, denunciando as arbitrariedades da Intendência na forma do pagamento dos salários atrasados, no descaso com as condições de trabalho e no desrespeito para com a categoria. As mulheres seguiram enviando suas cartas aos jornais denunciando as arbitrariedades governamentais.
Finda a greve, as mulheres que tiveram um papel de destaque não retornaram ao anonimato dos seus lares, prática corrente entre as mulheres, não só daquele período. Amélia Bahia da Silva Araújo, Sidônia Gonsalves de Alcântara, Maria Gertrudes de Souza, Emília Lobo Vianna, Jovina Senna Moreira, Anna Moreira Bahiense e muitas outras, seguiram tendo uma importante atuação política entre o professorado e já em 1919 algumas delas lançam-se publicamente a campanha eleitoral apoiando Rui Barbosa37 reafirmando sua situação de opositoras. .

NOTAS

1Este artigo é fruto da pesquisa "Lutando contra a corrente: construindo a história das lutas políticas das mulheres na Bahia", desenvolvida através do NEIM/UFBa, com a colaboração dos bolsistas Dorismar Espirito Santo, Ailton Alcantara, Hélida Conceição (PIBIC-CNPq/UFBa) e Jaciara Brandão de Sena (REDOR/Fundação Ford).

2
Professora do Depto. de Ciência Política e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher - NEIM/UFBa

3
Graduanda do curso de História da UFBA

4
Scott, Joan Wallach. El problema de la invisibilidad. In. Escadon, Carmem Ramos (org) Género e historia: la historiografía sobre la mujer" México: Instituto Mora, 1992. P.39

5
Perrot, Michelle, Haciendo História: las mujeres en Francia. In. Escadon, Carmem Ramos (org). Op. cit. P.73.

6
Escadón, Carmem Ramos. Historiografia, apuntes para una definición en femenino. Debate Feminista. Ano 10, Vol.20, outubro de 1999. México, 139

7
Almeida, Maria Amélia Ferreira de, Feminismo na Bahia. 1930-1950. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais/UFBa. Salvador, 1986. P. 44.

8
"O grosso da mão de obra-feminina, contudo, estava em categorias profissionais muitas vezes não contempladas pelo censo. Alimentando a massa de habitantes com comidas baratas vendidas nas ruas ou em pequenos estabelecimentos, prestando todo tipo de serviço doméstico, costurando ou bordando, etc., a participação das mulheres se fez vigorosa na luta pela sobrevivência em face de uma economia que não oferecia alternativas formais de emprego.". Ferreira Filho. Alberto Heráclito. Salvador das mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque imperfeita. Mestrado em Ciências Sociais/UFBa. Salvador:1994, p. 32/33

9
Um exemplo dessa situação é a carta publicada no Diario de Noticias onde uma professora solicita a intermediação de um coronel para conseguir o pagamento do seu salário em atraso: "Estou em uma situação de miseria sem ter quem me forneça a pão, alem de tudo, falta agua aqui no arraial, estando-se comprando com distancia de legua e meia. Imagine coronel quem está em minhas condições, sem o minimo recurso que penurias não há de passa; só peço a Deus resignação para supportar tantas calamidades.
Peço pelo amor de vossa honrada familia, ver se consegue com o dr. Tourinho receber algum mez para que eu possa alliviar os meus soffrimentos.
Quando vejo meus filhos passando necessidades, só me falta perder o juízo.
Estou pedindo a Deus que o amigo consiga alguma coisa a meu favor.
Sem mais, espero que venha uma resposta satisfatoria para dar sucego ao meu espirito e subscrevo-me creada obriggadissima.". (Diario de Noticias, 10/10/1914)

10
Silva, Maria da Conceição. O Ensino primário na Bahia. 1889-1930. Doutorado em Educação/UFBa. Salvador: 1997: pag.83.

11
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Op.cit. Pag .71

12
"É a partir de uma série de matérias publicadas nos grandes jornais de Salvador, relatando os feitos das feministas inglesas na sua luta pela conquista do voto, que o feminismo chega a Bahia, isso por volta de 1912. Longe do modelo bem comportado de feminismo que dominará a cena política baiana na década de 30, a matriz histórica do feminismo que por aqui aportou, caracterizava-se pela radicalidade, rebeldia e utilização do terrorismo como principal tática de luta para chamar atenção sobre a condição feminina ". Costa, Ana Alice A. Matrizes Históricas do Feminismo Baiano: As lutas sufragistas através da imprensa. 8º Encontro da REDOR. NEGIF/UFCE, 1999.

13
Diário da Bahia, 13 de fev. de 1918, p. 1, c. 3 (grifo nosso)

14 Ver: Pateman, Carole. O contrato Sexual. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993

15 Silva, Maria da Conceição. Op. cit.

16
O Jornal A Tarde comentava sobre uma reunião no Conselho Municipal realizada em 16 de setembro em que foi tratada a questão do abono das faltas de professores que já não compareciam mais a sala de aula, permanecendo dias inteiros na Intendência e no Tesouro a espera do pagamento de seus vencimentos e apresentava a situação de atrazo salárial de algumas professoras: "D. Aurelia tinha a receber dezembro de 1914, dezembro de 1915 e janeiro a agosto do corrente, dez meses! D. Augusta não recebeu dezembro de 1914, setembro e dezembro de 1915, janeiro a agosto de 1916, quatorze mezes! D. Clara não recebeu 2 mezes de 1915 e oito de 1916, dez mezes!... (A Tarde 20 de set de 1916)

17
Jornal: DIÁRIO DE NOTÍCIAS 28/05/1917, p. 2

18
"Não há mais quem ignore parece, a deprimente e embaraçosa situação do professorado publico primario do municipio da capital deste Estado.
Sem lar, sem credito, faminto, nu, aviltado de há muito, entretanto se tem mantido com sacrifficios inconcebíveis, embora, porem calado no desempenho das funcções que lhes são ditadas pelo dever, com os olhos fitos na imagem sagrada da Pátria, a consciencia tranquilla pela posição assumida diante dos descalabros sociaes, a alma em preces, confiada sempre na infinita misericordia de Deus que não abandonaria jamais a Terra da Santa Cruz.
Despreocupados do bem viver que só o mercantilismo justifica; encarando a sua funcção na sociedade como um verdadeiro sacerdocio a cuja sombras somente, vão buscar abrigo os que sonham com a humildade que, felizmente conforta e retempera sem a remuneração que ao menos, por hypothese compense o esforço empregado, vive trabalha e aguarda a nova lida, na convicção de que jamais cerrou ouvidos aos gritos dos sedentos da instrcção."
Não reabrir a escola é um attentado aos direitos do povo que vexatoriamente contribui; continuar a trabalhar antes de remediadas as nossas necessidades é um suicídio: - teremos, fatalmente, de optar pela primeira hypothese, seja qual for a consequencia.
Bastam os deploraveis fallecimentos, como mendigos de um punhado de martyres, cujo epilogo é um recente termino do professor André Avelino de Souza, com 32 annos de inestimaveis serviços...
A fome, portanto, e a loucura já tem ceifado vidas de alguns dos mais abnegados dos seus representantes; a deshonra e o descredito tem inutilizado outros; a dor e o pranto combalido outros tantos; restando somente um pungido d'aquelles que se não deixam abater antes de, perante a Nação brasileira lavrar o mais energico, o mais vibrante dos protestos.
É esta a missão do professorado...: lutar contra o aniquilamento pela fome..." MANIFESTO DO PROFESSORADO PUBLICO MUNICIPAL DA CAPITAL DO ESTADO DA BAHIA AO POVO BRASILEIRO (Diario da Bahia, 31/01/1918)

19
"... o gráo de rebaixamento a que tem descido a classe a que temos o prazer de pertencer chegou ao termino da escala pois que suportamos emmudecidos todas as injustiças com que somos tratados e, quando uma vez se ergue para protestar é logo abafada pela mordaça official aplicada para a implantação do terror (...)
De há muito vimos supportando a mais clamorosa injustiça, quer nos direitos que nos assistem da selecção pelo trabalho, quer na preterição relativa à percepção dos vencimentos. (...)
Pois bem meu illustre collega, este esforço por mim feito e pelas minhas distinctas auxiliares, poder executivo municipal compensa negando a todos nós o pagaamento dos vencimentos a que temos direito, pois que tenho nada menos que 29 mezes de atrazo de ordenados alem de igual número de mezes de pesados alugueis da casa escolar por mim pagos, mensalmente, ao proprietário, enquanto professoras outras que contam protecção revoltante, recebem com pontualidade, embora tenham as escolas desertas de alumnos!
Maior se torna a indignação por sabermos que nas demais classes de funcionários deste Municipio nem um, siquer conta por tão longo tempo o atrazo de sues vencimentos!..." (Diario da Bahia, 15/02/1918)

20
Diario da Bahia, 15/02/1918

21
Diário da Bahia 18/02/18

22
Diário da Bahia, 19/02/18

23
Perrot, Michelle, op.cit, pag.73

24
Diário da Bahia, 15 de fevereiro de 1918, p. 2, c. ½ (apesar de constar que a carta fora dirigida ao jornal A Tarde, na fonte consta que estava no Diário da Bahia)

25
Diário da Bahia, 16/02/1918, pag. 1

26
Refere-se a conferência realizada no Teatro Lírico (s/d) em que Ruy Barbosa manifesta seu apoio ao professorado. Diário da Bahia, 31 de janeiro de 1918, p. 2

27
SANTOS, Mário Augusto da Silva. Sobrevivências e Tensões Sociais Salvador 1890 - 1930, Tese de Doutorado, São Paulo, 1982, pag. 360

28
Naghe, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. Fundação Material Escolar, 1974 , pp. 38/39

29
Sampaio, Consuelo Novais. O poder legislativo na Bahia. Primeira República (1998-1930). Salvador: Assembléia Legislativa, 1985. Pag.43

30
Diário da Bahia, 17 de set. de 1919, p. 2, c. 3, Set/Dec. de 1919, local I.H.G.B.

31
"A palavra, na linguagem oficial, não comportava elementos doutrinários, isto é, não era empregada em sentido técnico; "o significado era o do senso comum." Naghe, Jorge., p. 40

32
Diário da Bahia, 19 de fevereiro de 1919

33
A Época. In Diário da Bahia, 11 de abril de 1918

34
Rio 10 (A Tarde) - Noticia o Rio Jornal
O emprestimo à municipalidade da Bahia para o pagamento ao professorado, complica-se...
...O sr. Wenceslau Braz quis ouvir a respeito o sr. Seabra..., e respondeu ao presidente nesses termos:
Isso é uma questão interna que os poderes publicos do Estado e do Municipio estão resolvendo la mesmo e como que vem fazendo especulação política contra a qual protesto. Diário da Bahia, 12 de abril de 1918, p. 1

35
Diário da Bahia, 12 de abril de 1918, p. 1

36
Diário da Bahia, 12 de abril de 1918

37
A Tarde, 03 de fev., 1919, p. 2

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