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AS MULHERES NA "REVOLTA DOS RESIGUINADOS":
A GREVE DOS PROFESSORES MUNICIPAIS EM 19181
Ana Alice Alcantara Costa2
Hélida Conceição3
Reconstruir a história da participação
das mulheres nas lutas políticas não tem sido tarefa fácil.
As perspectivas androcêntricas da Ciência Política
e da História constituíram-se em verdadeiras barreiras à
visibilidade das mulheres, na medida que ao se limitarem a modelos e conceitos
tradicionais de participação ou a identificarem sujeitos
coletivos assexuados fundamentados em arquétipos viris, mantiveram
as mulheres à margem da historiografia.
Hoje sabemos, graças às pesquisas mais recentes, que as
mulheres não eram inativas ou que estiveram ausentes dos acontecimentos
históricos, o que houve foi uma omissão sistemática
das mulheres nos registros oficiais. "A história do desenvolvimento
da sociedade humana foi narrada quase sempre pelos homens e a identificação
dos homens com a 'humanidade' tem tido como resultado, quase sempre, o
desaparecimento das mulheres dos registros do passado."4
Nesse sentido, este artigo tem por objetivo construir a visibilidade feminina
nos eventos da greve dos professores municipais de Salvador de 1918. Um
movimento que tem despertado pouco interesse por parte dos estudiosos
do período e mesmo estes raros estudos não conseguem identificar
as especificidades de um movimento realizado por uma categoria profissional
essencialmente feminina.
Nesse sentido, a partir da perspectiva dos estudos de gênero, faremos
uma retomada dos fatos e acontecimentos, avaliando em termos políticos
e sociais, seu significado para a sociedade baiana. Desta forma analisaremos
como foram implementadas as ações grevistas, as principais
demandas, seus lideres, suas conquistas e especificidades, ressaltando
a forma distinta de relação das mulheres com o movimento.
Para tanto, recorreremos não só aos estudos já realizados
sobre a greve, mas em especial nos debruçaremos sobre os principais
jornais do período, em especial as cartas enviadas pelas professoras
aí publicadas, na busca de um novo ângulo de análise.
Como diz Perrot, "enfocar as fontes tradicionais desde um ângulo
diferente é, sem dúvida, o primeiro passo"5
para construir a historiografia das mulheres.
Vale explicitar que entendemos as mulheres como um produto histórico,
fruto de sua época, das relações de classe e etnia
que vivenciam. Desse modo, entendemos, como afirma Escadon, que a cultura
e todo o universo simbólico, a vida social, as instituições,
os costumes, em fim a história é o que constitui através
do tempo a diferença entre os gêneros. Daí resulta
que enquanto o sexo é um mero atributo biológico específico,
gênero é a construção de formas culturais consideradas
como apropriadas para o comportamento de indivíduos do sexo feminino
ou masculino, constituindo assim a diferença sexual. Nesse sentido
a diferença sexual é um produto da cultura, um hábito
social que se consolida através do tempo6 .
A Bahia dessa época caracterizava-se, assim como o Brasil, por
uma economia dependente fundamentada no capital agro-exportador. A República,
em seu processo de consolidação, não tinha ainda
conseguido alterar as velhas relações de poder, os sistemas
de privilégios. A estabilidade política do país era
conseguida pelo apoio incondicional do governo federal ao grupo político
local dominante em troca da submissão dessas oligarquias locais
a esse poder central.
Salvador, a capital do Estado, podia ser caracterizada por um lento crescimento
urbano, orientado pelos grupos comerciais que detinham o controle imobiliário,
associados muitas vezes ao grupo político que estava no poder.
As altas de preços, a falta de abastecimento, as condições
precárias de saúde pública e, sobretudo o desemprego
acentuavam as crises e tensões sociais desenvolvidas a partir das
contradições do cotidiano e da carestia de vida.
Em 1920, Salvador possuía 283.422 habitantes, dentre os quais 151.294
mulheres. Segundo dados estatísticos analisados por ALMEIDA7
nesse período a população feminina estava
assim distribuída: 1% na agricultura e pecuária; 17% estavam
na indústria sendo que a maior concentração de operárias
se dava na indústria de vestuário e tocador (85% da mão
de obra); 3% no setor terciário (transporte, comércio, força
pública, administração, profissões liberais
e em especial no magistério); 8,5% no serviço doméstico
e 70% em profissões mal definidas8 .Apenas 52% das mulheres
sabiam ler e escrever, para os homens o percentual era de 60% nesse mesmo
período.
O censo de 1920 apontava ainda que as mulheres ocupavam 73,3% do magistério,
sendo que na área do ensino municipal de Salvador as mulheres representavam
81,73% do corpo docente. Essa, aliás, era a profissão considerada
mais adequada para as mulheres em perfeita sintonia com os estereótipos
femininos dominantes e todos os limites impostos por uma moral patriarcal.
Da professora exigia-se uma conduta moral rígida e extensiva a
toda sua família.
O contraponto para a rigidez e o controle moral exercidos sobre as professoras
eram os atrasos nos já baixos salários, as péssimas
condições de ensino e trabalho. Nos jornais do período
são constantes as denúncias de professoras sobre seu estado
de miséria e abandono9 chegando a ficar 18 meses sem
salários e entregues a própria miséria. O atraso
nos salários era uma prática corrente herdada do Império.
A Republica apesar das importantes modificações na estrutura
do ensino não trouxe mudanças significativas ao exercício
do magistério. Exemplo dessa prática é o orçamento
do Estado para o ano de 1914, onde para a polícia estava reservado
2.519:529$800 (dois mil e mais de quinhentos contos) e para a instrução
primária apenas 1.284:000$00010 .
Não podemos esquecer que a entrada massiva de mulheres no magistério
veio acompanhada de um processo crescente de desvalorização
salarial e de perda de prestigio. Essa é uma prática comum
em todas as profissões que passam por um processo de feminização.
Certamente o descaso com as condições de trabalho, os baixos
salários e os constantes atrasos no pagamento estavam vinculados
a uma ideologia patriarcal que via e tratava o trabalho feminino como
complementar.
Não obstante as limitações, discriminações
e impedimentos, essa inserção na força de trabalho
era ainda uma das poucas possibilidades de atuação no espaço
público possível para as mulheres de classe média.
Segundo Ferreira Filho, Salvador era extremamente hostil a participação
das mulheres da elite no mercado de trabalho. O trabalho feminino era
a denuncia das dificuldades financeiras que a família estaria vivendo.
"O ócio ou a eterna espera dos maridos determinava a vida
de muitas mulheres, que, apesar da sedução das ruas, mantinham-se
reclusas no interior dos lares, sendo mal vistas quando permaneciam por
muito tempo nas janelas."11
No âmbito do exercício da cidadania, as mulheres estavam
totalmente cerceadas dos direitos civis e as lutas reivindicativas do
movimento feminista internacional recém apareciam na imprensa baiana,
sempre sob uma forma crítica e pejorativa alertando as baianas
para os "perigos" de uma emancipação das mulheres12
.
Excluídas dos espaços de representação política,
as mulheres tinham poucas possibilidades de intervir na definição
das diretrizes orçamentárias ou mesmo na definição
de políticas educacionais. A luta pelo direito ao voto vinha arrastando-se
desde inicio do século XIX liderada por mulheres letradas e de
elite sem conseguir mobilizar a maioria da população feminina
e sem muitas possibilidades de vitória. O fato das mulheres não
fazerem parte do eleitorado baiano era tido, inclusive, como uma das justificativas
para o descaso governamental em relação ao professorado,
conforme podemos verificar na nota a seguir, publicada no Diário
da Bahia:
"À parte as melgueiras em que não lavas as lampas ao
actual intendente, o sr. Pacheco Mendes, escolheu para espelho do seu
descriterio, e desonestidade administrativa, o professorado municipal,
classe esta que, por ser constituida em sua maior parte, por senhoras,
e não ter expressão eleitoral, nem interferência na
administração, nenhum apreço merece dos parasitas
e pobretões que entre nós, transformaram a administração
publica em meio de vida e industria de poder."13
Não obstante essa exclusão feminina dos mecanismos formais
de participação política, a mobilização
dos professores municipais que culminou com a deflagração
da greve janeiro de 1918, foi o exemplo de combatividade das mulheres
e ao mesmo tempo a confirmação da necessidade de redefinir
o conceito de participação política ou mesmo as afirmações
de que as mulheres sempre estiveram à margem da história,
afinal, não podemos esquecer que o atual conceito de política
foi construído historicamente a pa rtir das teorias do "contrato
social" fundamentadas na exclusão das mulheres, relegando-as
ao mundo do privado.14
As reivindicações por melhores salários e contra
o atraso nos pagamentos vinham se arrastando por muitos anos. Maria da
Conceição Silva retrata muito bem em seu trabalho a longa
luta travada pelo professorado municipal em busca de melhores condições
salariais nos trinta primeiros anos da República15
. A partir de 1915 a situação econômica dos professores
agravava-se, muitos deles, num ato desesperador, abandonavam as salas
de aula e passavam dias inteiros na Intendência e no Tesouro Municipal
em busca de seus salários 16 .
Sem muitas alternativas, os professores procuraram, em um primeiro momento,
a via legal para garantir seus salários. Em setembro de 1916 o
professorado municipal reunido sob a presidência do professor Francellino
de Andrade, delegado escolar, secretariado pelos professores Hugo Balthazar
da Silveira e Maria Olympia Rabello contrataram o Dr. Migdonio de Oliveira,
um advogado, para pleitear junto aos tribunais competentes, a garantia
de verbas para a instrução, conforme o garantido pela Constituição17
.
Porém, a situação da categoria não é
resolvida. Diante das dificuldades financeiras e do descaso governamental,
em janeiro de 1918 os professores decidem pelo não reinicio das
aulas. No dia 29 de janeiro os professores lançam o Manifesto do
Professorado Público Municipal do Estado da Bahia ao Povo Brasileiro18
, conclamando todos para a greve.
Com a publicação do manifesto, o movimento ganhou força,
vários professores de renome aderem ao movimento. Imediatamente
o movimento ganha a simpatia da população.
Na primeira quinzena de fevereiro de 1918, o professor Isauro Coelho foi
suspenso de suas atividades docentes pelo intendente Propício da
Fontoura, "em vista de ter clamado contra a fome a que se acha reduzida
sua classe".Vários professores manifestaram-se através
da imprensa contra tal arbitrariedade. Destaca-se a carta de Emilia de
Oliveira Lobo Vianna, professora de uma escola feminina na rua do Paço,
segunda maior escola do Município, pela veemência do ataque
contra o intendente19 .
Outros professores demonstraram seu protesto pedindo a substituição
e declarando-se em greve, assim o fez Jovina Castro Senna Moreira, proprietária
da cadeira do sexo feminino de Castro Neves, reafirmando sua "solidaria
in totum com o professor Isauro Coelho, arbitrariamente suspenso de suas
funcções"20 . Esse ato de arbitrariedade
provocou um acirramento da greve com a adesão de outros importantes
professores: Severiano Salles Filho; Antonio Peixoto Guedes; Anthenor
Dantas Simões; Antonio Azevedo; D. Eluisina de Mattos Lemos da
escola da Conceição da Praia; D. Maria do Carmo Trindade
Soares, da escola do Baluarte.
Através dos jornais os professores são convocados para as
reuniões da categoria, as dependências do Liceu de Artes
e Oficio transformam-se no pólo aglutinador. Na Comissão
de Convocação do movimento, composta por 14 professores,
destacam-se 04 mulheres: Jovina de Castro Senna Moreira; Anna Moreira
Bahiense; Jesuina Beatriz de Oliveira; Emilia de Oliveira Lobo Vianna.
Assim, as mulheres vão tendo um papel significativo na condução
do movimento grevista conforme podemos ver na composição
da estruturação da coordenação do movimento
aprovada na reunião de 19 de fevereiro. A Comissão Central
da Greve foi constituída pelos professores: Possidônio Dias
Coelho, Jacyntho Caraúna, Cincinato Franca, Vicente Café,
Dasio Silva, Hugo Balthazar da Silveira, Antonio Guedes, Severiano Salles
Filho, Jovina Senna Moreira, Alberto de Assis, A. Dantas Simões,
Emília de Oliveira Lobo Vianna, Anna Moreira Bahiense, Jesuina
de Oliveira e Sidônia Alcântara. Para a Comissão de
recepção foram indicadas as professoras Laura Baraúna,
Stela Lemos, Amélia Bahia, Maria Amélia Rabelo, Augusta
Franca Neves e Laura Cardoso21 .
Essa foi uma reunião muito concorrida, registrando-se a presença
de muitas professoras, segundo lista de presença publicada no Diário
da Bahia, participaram dessa reunião 46 professoras e 9 professores,
"... na sua maioria constituída de virtuosas senhoras e de
cujo elemento masculino não se conhecem manifestações
e costumes politiqueiros..."22
O espaço de participação das mulheres no movimento
do professorado apresenta-se de forma marcante, tanto no plano real quanto
no simbólico. Ambos coexistem em uma esfera maior da representação
social e política expressa durante a greve, na tentativa de inserção
da voz feminina nos assuntos de ordem pública. As mulheres rompem
as barreiras do espaço doméstico para estarem na linha de
frente da condução da greve.
Esse é um dos principais destaques dessa mobilização.
Ao contrario dos vários movimentos grevistas desse período,
- em especial do operariado têxtil, onde as mulheres embora fossem
a maioria absoluta da mão de obra empregada, as mobilizações
são conduzidas pelos homens - as professoras assumem a dianteira
do movimento, participando ativamente das instancias deliberativas, assumindo
a condução das comissões de trabalho, participando
das audiências publicas e das mesas de negociações
com a intendência.
A greve dos professores traz também a publico uma outra forma de
luta que podemos assim dizer, tipicamente feminina, as cartas. Historicamente,
fazer cartas, tem sido a forma de manifestação privada das
mulheres. Excluídas durante séculos das esferas de participação,
as mulheres recorriam as cartas, mesmo que em âmbitos restritos,
para manifestarem seus desejos, sonhos aspirações, sofrimentos,
relatarem vivencias familiares, experiências do cotidiano e são
exatamente estas cartas que Perrot aponta como importantes fontes de construção
da historiografia das mulheres23 .
Na greve de professores da Bahia, as cartas eram as armas mais utilizadas
pelas mulheres na denuncia das suas condições de miséria
por conta da política salarial da Intendência. Rompiam a
intimidade do privado tornando publica através dos jornais baianos,
as dificuldades financeiras que estavam passando, transgrediam os costumes
locais ao publicisarem que estavam sob ordem de despejos, que já
não tinham mais como pagar o aluguel ou sustentar a família.
Era, sobretudo através de cartas na imprensa que estas professoras
registravam seus protestos, destilavam críticas ao governo municipal,
mostravam-se solidárias as reivindicações e manifestavam
suas adesões ao movimento e principalmente conclamavam as colegas
a aderirem ao movimento.
A professora Sra. Jovina de Castro Senna Moreira, há onze anos
dedicada ao ensino primário na escola do sexo feminino de Castro
Neves, em uma carta ao jornal A Tarde, afirma:
"Estou, conforme officiei a quem de direito, solidaria com o meu
distincto collega, toda a classe e dirijo-me às minhas distinctas
collegas para que não abandonem a occasião que Deus nos
proporcionou de libertamo-nos da tirania que nos opprime."24
A conclamação da professora expressa na sua carta, constitui
um elemento importante de reconhecimento da predominância feminina
na categoria e na condução do movimento. Tal conclamação
possibilita também o entendimento de que Jovina não se referia
apenas aos exploradores da sua força de trabalho, mas em um sentido
mais amplo, que envolve o próprio papel feminino, isto é,
o movimento poderia representar também um instrumento de liberação
feminina contra a "tirania que nos opprime". Afinal, acreditamos
que estas mulheres que estavam à frente do movimento eram conhecedoras
de todas as dificuldades de mobilização de uma categoria
essencialmente feminina e o ônus pago pelas mulheres que transgrediam
aos papéis e modelos estabelecidos.
Estas cartas eram também um instrumento de busca do apoio popular,
uma característica que o movimento soube garantir, em especial
através da imprensa. A condição de penúria
em que os professores estavam vivendo nos últimos anos era de conhecimento
geral da população, tal situação contrapunha-se
ao grau de prestigio e respeitabilidade que a categoria ainda detinha,
principalmente as mulheres, identificadas com a maternidade e a afetividade.
"Somos uma classe soffredora, oprimida e perseguida, mas altiva e
insubmissa, confiante no apoio da população bahiana, para
que as iniquilidades sejam eficazmente combatidas."25
De fato, identifica-se claramente nos jornais da cidade daquele período,
uma tentativa de sensibilização geral da sociedade, em prol
das reivindicações dos grevistas. Esta preocupação
revela-se na produção de um discurso alinhado às
questões sociais, políticas, orçamentárias
e também morais. O próprio Rui Barbosa, grande líder
oposicionista, em defesa da categoria denominou a greve, como a "Revolta
dos Resignados"26 .
Ferem, a conjuntura dessa greve, não pode ser explicada sem o entendimento
mais amplo da situação de crise na qual se encontrava o
poder municipal. De fato a Intendência neste momento encontrava-se
em uma situação de déficit de suas finanças,
implicando em atraso salarial dos servidores públicos, que se viam
penalizados pelos cortes nas despesas que incidia diretamente nos seus
salários. É neste contexto que, segundo avaliação
de Santos: "A greve surge, então, como reação
espontânea com um objetivo imediato. Não se descarta, todavia,
a possibilidade de uma influência reflexa da maré montante
de reivindicações do trabalho."27
Por outro lado, no contexto dos movimentos grevistas das duas primeiras
décadas do século XX, especialmente a partir de 1917, merece
destaque a penetração social das idéias anarquistas,
socialistas e comunistas, entre os setores operários urbanos. Mesmo
sem uma interferência conseqüente, estas idéias tiveram
alguma repercussão num "ambiente de efervescência ideológica
e inquietação social."28
No caso específico da greve do professorado baiano, torna-se impossível
detectar o grau de influência desta idéias, já que
o movimento tinha como objetivos específicos e imediatos, receber
os salários atrasados e manifestar suas insatisfações
para com a Intendência municipal. Por outro lado, não obstante
juntarem-se a outras categorias profissionais durante as manifestações
grevistas de 1919, os professores seguiam sendo uma categoria diferenciada,
com muito prestígio e "orgulhosos do seu status de funcionário
público" conforme afirma Sampaio:
"É interessante observar que, durante a greve geral de 1919,
várias facções desse segmento (professores de escolas
públicas, funcionários públicos menores, telefonistas
etc) juntaram-se ao proletariado em reivindicações por melhores
salários e por gêneros alimentícios mais baratos.
Contudo, orgulhosos do seu 'status' de funcionário público,
os integrantes desse segmento não se identificavam com o proletariado"
29 .
Cabe registrar a nota oficial emitida pela Intendência no Diário
da Bahia, onde qualifica a ação dos grevistas, por ocasião
do requerimento da professora Beatriz Carneiro, que reclamava o pagamento
dos atrasados de julho a dezembro de 1918.
"O caso da Peticionaria é um dos muitos decorrentes daquelle
sopro de anarchia que, entregando-se a nobre classe do ensino primario
ao estado de indisciplina, fell-a constituir-se em greve por espaços
de muitos mezes sem direito a vencimentos..."30
De modo geral o combate oficial contra as expressões de insatisfação
de uma classe, incluindo os movimentos grevistas, eram tomados por 'anarquismo'31
Anarquista era um nome a ser empregado para designar socialistas, anarquistas,
comunistas ou todo aquele que perturbasse a ordem pública.
Os protestos do professorado municipal tornam-se um indicativo revelador
da situação política na Bahia, durante o período
do governo de Antonio Moniz eleito, pelas mãos fortes de J.J. Seabra,
que continuava exercendo sua hegemonia política. No ano de 1917
o acirramento da crise econômica e social na Bahia, aumentou as
tensões entre o governo estadual e a oposição. Os
efeitos da 1ª Guerra Mundial faziam-se sentir no aumento do custo
de vida da população e na falta de suprimentos e produtos
básicos para a sobrevivência. Diante desta conjuntura a população
não poupava os poderes públicos com suas queixas e indignação
face à incapacidade de Antonio Moniz para lidar com a situação.
Na esteira destes acontecimentos, a oposição mostrava-se
cada vez mais disposta a acirrar o descontentamento popular contra os
políticos do partido situacionista.
Nestas circunstâncias a greve dos professores torna-se um movimento
aglutinador dos setores descontentes. Às reuniões e assembléia
realizadas no Lyceu de Artes e Ofícios comparecem representantes
de diversos segmentos urbanos, demonstrando as adesões que engrossavam
o movimento. O Diário da Bahia noticia uma reunião ocorrida
no Lyceu em 19 de fevereiro de 1918, na qual constata-se a dimensão
alcançada pelo movimento do professorado, entre as classes dos
profissionais liberais:
"Nem outro devera ter sido o sentimento daquella assistencia vultuosa
em meio a qual se viu dignissimos professores do ensino secundário,
superior, médicos, advogados, negociantes, industriaes, jornalistas,
artistas, altos funccionarios publicos, operários, tocados do mesmo
enthusiasmo, applaudindo com expressivas orações, os professores
nas pessoas dos que terçavam pela palavra, em defesa da classe."32
Essa característica de aglutinador dos setores descontentes com
a hegemonia Seabrista será determinante na decisão da comissão
central dos professores que com a justificativa de resolver o impasse
instaurado entre o movimento grevista e o poder municipal, resolve recorrer
ao presidente da República Dr. Wenceslau Brás, solicitando
a intervenção do governo federal. O jornal carioca A Época,
noticia a repercussão do movimento na capital da República:
"A situação do professorado bahiano chegou a tal estado
de penúria... que se viu na necessidade de apellar para a generosidade
publica fazendo bando precatorios e depois para o auxilio e prestigio
da colonia bahiana aqui residente, pedindo a sua intervenção
junto aos poderes federais."33
O governo federal decide então intervir no caso e autoriza o Banco
do Brasil a conceder um empréstimo de mil e quinhentos contos de
réis à municipalidade baiana, para que possa saldar em grande
parte, os salários atrasados dos professores. Face esta iniciativa,
o DR.J.J. Seabra considera inoportuna a intervenção da União
nos assuntos do estado34 .
A reação do professorado foi imediata, na medida em que
ficou clara a intolerância do governo estadual e o posicionamento
intransigente das forças seabristas, face às reivindicações
da classe. Nos jornais aparecem referências como a "Asa Negra
do Dr. Seabra"35 , uma alusão clara da forte oposição
que vinha ensaiando seus ataques contra as forças situacionistas.
Diante do impasse a maioria das escolas municipais seguia fechada.
Em abril de 18 foi criado o Centro de Defesa do Professorado Primario
Bahiano, sendo eleita a seguinte diretoria: Possidônio Dias Coelho
(Presidente); Sidônia Gonsalves de Oliveira Alcântara (1º
vice-presidente); Maria Athayde da Cunha Baleeiro (2º vice-presidente);
Appollonio José do Espirito Santo (1º secretario); Antonio
Sallustino Ferreira de Azevedo (2ºsecretario); Anna Moreira Bahiense
(Tesoureira). Emília de Oliveira Lobo Vianna, Jesuina Beatriz de
Oliveira, Aureliana Paula da Cunha foram eleitas vogais e Maria Flora
Teitosa (sic.), Julia Lordello e Amélia Bahia faziam parte da Comissão
de Contas, os outros cargos foram preenchidos pelos homens36
.
Em agosto o novo intendente José da Rocha Leal, comunica ao Conselho
Municipal que autorizou o pagamento aos professores, de forma escalonada,
a começar pelos salários mais atrasados, em função
da pouca disponibilidade de recursos. O intendente comunicava ainda, estar
tendo dificuldades em pagar os meses a partir de janeiro, por estarem
os professores em greve. Nessa mesma seção do Conselho Municipal
foi comunicado o cancelamento da portaria que havia suspendido o Prof.
Isauro Coelho em fevereiro.
Em fins de setembro, com os salários sendo regularizados, a greve
começa a perder força, mesmo assim, essa foi a mais longa
greve do funcionalismo público baiano durante a Primeira Republica
e a primeira onde as mulheres têm um papel de destaque na sua condução.
Apesar das conquistas da greve, a precariedade do ensino público
na Bahia não será resolvida e o ano de 19 é marcado
pela presença constante das professoras nos jornais, denunciando
as arbitrariedades da Intendência na forma do pagamento dos salários
atrasados, no descaso com as condições de trabalho e no
desrespeito para com a categoria. As mulheres seguiram enviando suas cartas
aos jornais denunciando as arbitrariedades governamentais.
Finda a greve, as mulheres que tiveram um papel de destaque não
retornaram ao anonimato dos seus lares, prática corrente entre
as mulheres, não só daquele período. Amélia
Bahia da Silva Araújo, Sidônia Gonsalves de Alcântara,
Maria Gertrudes de Souza, Emília Lobo Vianna, Jovina Senna Moreira,
Anna Moreira Bahiense e muitas outras, seguiram tendo uma importante atuação
política entre o professorado e já em 1919 algumas delas
lançam-se publicamente a campanha eleitoral apoiando Rui Barbosa37
reafirmando sua situação de opositoras. .
NOTAS
1Este
artigo é fruto da pesquisa "Lutando contra a corrente: construindo
a história das lutas políticas das mulheres na Bahia",
desenvolvida através do NEIM/UFBa, com a colaboração
dos bolsistas Dorismar Espirito Santo, Ailton Alcantara, Hélida
Conceição (PIBIC-CNPq/UFBa) e Jaciara Brandão de
Sena (REDOR/Fundação Ford).
2 Professora do Depto. de Ciência Política e pesquisadora
do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher - NEIM/UFBa
3 Graduanda do curso de História da UFBA
4 Scott, Joan Wallach. El problema de la invisibilidad. In. Escadon,
Carmem Ramos (org) Género e historia: la historiografía
sobre la mujer" México: Instituto Mora, 1992. P.39
5 Perrot, Michelle, Haciendo História: las mujeres en Francia.
In. Escadon, Carmem Ramos (org). Op. cit. P.73.
6 Escadón, Carmem Ramos. Historiografia, apuntes para una
definición en femenino. Debate Feminista. Ano 10, Vol.20, outubro
de 1999. México, 139
7 Almeida, Maria Amélia Ferreira de, Feminismo na Bahia.
1930-1950. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais/UFBa.
Salvador, 1986. P. 44.
8 "O grosso da mão de obra-feminina, contudo, estava
em categorias profissionais muitas vezes não contempladas pelo
censo. Alimentando a massa de habitantes com comidas baratas vendidas
nas ruas ou em pequenos estabelecimentos, prestando todo tipo de serviço
doméstico, costurando ou bordando, etc., a participação
das mulheres se fez vigorosa na luta pela sobrevivência em face
de uma economia que não oferecia alternativas formais de emprego.".
Ferreira Filho. Alberto Heráclito. Salvador das mulheres: condição
feminina e cotidiano popular na Belle Époque imperfeita. Mestrado
em Ciências Sociais/UFBa. Salvador:1994, p. 32/33
9 Um exemplo dessa situação é a carta publicada
no Diario de Noticias onde uma professora solicita a intermediação
de um coronel para conseguir o pagamento do seu salário em atraso:
"Estou em uma situação de miseria sem ter quem me forneça
a pão, alem de tudo, falta agua aqui no arraial, estando-se comprando
com distancia de legua e meia. Imagine coronel quem está em minhas
condições, sem o minimo recurso que penurias não
há de passa; só peço a Deus resignação
para supportar tantas calamidades.
Peço pelo amor de vossa honrada familia, ver se consegue com o
dr. Tourinho receber algum mez para que eu possa alliviar os meus soffrimentos.
Quando vejo meus filhos passando necessidades, só me falta perder
o juízo.
Estou pedindo a Deus que o amigo consiga alguma coisa a meu favor.
Sem mais, espero que venha uma resposta satisfatoria para dar sucego ao
meu espirito e subscrevo-me creada obriggadissima.". (Diario de Noticias,
10/10/1914)
10 Silva, Maria da Conceição. O Ensino primário
na Bahia. 1889-1930. Doutorado em Educação/UFBa. Salvador:
1997: pag.83.
11 FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Op.cit. Pag .71
12 "É a partir de uma série de matérias
publicadas nos grandes jornais de Salvador, relatando os feitos das feministas
inglesas na sua luta pela conquista do voto, que o feminismo chega a Bahia,
isso por volta de 1912. Longe do modelo bem comportado de feminismo que
dominará a cena política baiana na década de 30,
a matriz histórica do feminismo que por aqui aportou, caracterizava-se
pela radicalidade, rebeldia e utilização do terrorismo como
principal tática de luta para chamar atenção sobre
a condição feminina ". Costa, Ana Alice A. Matrizes
Históricas do Feminismo Baiano: As lutas sufragistas através
da imprensa. 8º Encontro da REDOR. NEGIF/UFCE, 1999.
13 Diário da Bahia, 13 de fev. de 1918, p. 1, c. 3 (grifo
nosso)
14 Ver: Pateman, Carole. O contrato Sexual. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1993
15 Silva, Maria da Conceição. Op. cit.
16 O Jornal A Tarde comentava sobre uma reunião no Conselho
Municipal realizada em 16 de setembro em que foi tratada a questão
do abono das faltas de professores que já não compareciam
mais a sala de aula, permanecendo dias inteiros na Intendência e
no Tesouro a espera do pagamento de seus vencimentos e apresentava a situação
de atrazo salárial de algumas professoras: "D. Aurelia tinha
a receber dezembro de 1914, dezembro de 1915 e janeiro a agosto do corrente,
dez meses! D. Augusta não recebeu dezembro de 1914, setembro e
dezembro de 1915, janeiro a agosto de 1916, quatorze mezes! D. Clara não
recebeu 2 mezes de 1915 e oito de 1916, dez mezes!... (A Tarde 20 de set
de 1916)
17 Jornal: DIÁRIO DE NOTÍCIAS 28/05/1917, p. 2
18 "Não há mais quem ignore parece, a deprimente
e embaraçosa situação do professorado publico primario
do municipio da capital deste Estado.
Sem lar, sem credito, faminto, nu, aviltado de há muito, entretanto
se tem mantido com sacrifficios inconcebíveis, embora, porem calado
no desempenho das funcções que lhes são ditadas pelo
dever, com os olhos fitos na imagem sagrada da Pátria, a consciencia
tranquilla pela posição assumida diante dos descalabros
sociaes, a alma em preces, confiada sempre na infinita misericordia de
Deus que não abandonaria jamais a Terra da Santa Cruz.
Despreocupados do bem viver que só o mercantilismo justifica; encarando
a sua funcção na sociedade como um verdadeiro sacerdocio
a cuja sombras somente, vão buscar abrigo os que sonham com a humildade
que, felizmente conforta e retempera sem a remuneração que
ao menos, por hypothese compense o esforço empregado, vive trabalha
e aguarda a nova lida, na convicção de que jamais cerrou
ouvidos aos gritos dos sedentos da instrcção."
Não reabrir a escola é um attentado aos direitos do povo
que vexatoriamente contribui; continuar a trabalhar antes de remediadas
as nossas necessidades é um suicídio: - teremos, fatalmente,
de optar pela primeira hypothese, seja qual for a consequencia.
Bastam os deploraveis fallecimentos, como mendigos de um punhado de martyres,
cujo epilogo é um recente termino do professor André Avelino
de Souza, com 32 annos de inestimaveis serviços...
A fome, portanto, e a loucura já tem ceifado vidas de alguns dos
mais abnegados dos seus representantes; a deshonra e o descredito tem
inutilizado outros; a dor e o pranto combalido outros tantos; restando
somente um pungido d'aquelles que se não deixam abater antes de,
perante a Nação brasileira lavrar o mais energico, o mais
vibrante dos protestos.
É esta a missão do professorado...: lutar contra o aniquilamento
pela fome..." MANIFESTO DO PROFESSORADO PUBLICO MUNICIPAL DA CAPITAL
DO ESTADO DA BAHIA AO POVO BRASILEIRO (Diario da Bahia, 31/01/1918)
19 "... o gráo de rebaixamento a que tem descido a classe
a que temos o prazer de pertencer chegou ao termino da escala pois que
suportamos emmudecidos todas as injustiças com que somos tratados
e, quando uma vez se ergue para protestar é logo abafada pela mordaça
official aplicada para a implantação do terror (...)
De há muito vimos supportando a mais clamorosa injustiça,
quer nos direitos que nos assistem da selecção pelo trabalho,
quer na preterição relativa à percepção
dos vencimentos. (...)
Pois bem meu illustre collega, este esforço por mim feito e pelas
minhas distinctas auxiliares, poder executivo municipal compensa negando
a todos nós o pagaamento dos vencimentos a que temos direito, pois
que tenho nada menos que 29 mezes de atrazo de ordenados alem de igual
número de mezes de pesados alugueis da casa escolar por mim pagos,
mensalmente, ao proprietário, enquanto professoras outras que contam
protecção revoltante, recebem com pontualidade, embora tenham
as escolas desertas de alumnos!
Maior se torna a indignação por sabermos que nas demais
classes de funcionários deste Municipio nem um, siquer conta por
tão longo tempo o atrazo de sues vencimentos!..." (Diario
da Bahia, 15/02/1918)
20 Diario da Bahia, 15/02/1918
21 Diário da Bahia 18/02/18
22Diário da Bahia, 19/02/18
23Perrot, Michelle, op.cit, pag.73
24Diário da Bahia, 15 de fevereiro de 1918, p. 2, c. ½
(apesar de constar que a carta fora dirigida ao jornal A Tarde, na fonte
consta que estava no Diário da Bahia)
25Diário da Bahia, 16/02/1918, pag. 1
26Refere-se a conferência realizada no Teatro Lírico
(s/d) em que Ruy Barbosa manifesta seu apoio ao professorado. Diário
da Bahia, 31 de janeiro de 1918, p. 2
27SANTOS, Mário Augusto da Silva. Sobrevivências e
Tensões Sociais Salvador 1890 - 1930, Tese de Doutorado, São
Paulo, 1982, pag. 360
28Naghe, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República.
Fundação Material Escolar, 1974 , pp. 38/39
29Sampaio, Consuelo Novais. O poder legislativo na Bahia. Primeira
República (1998-1930). Salvador: Assembléia Legislativa,
1985. Pag.43
30Diário da Bahia, 17 de set. de 1919, p. 2, c. 3, Set/Dec.
de 1919, local I.H.G.B.
31"A palavra, na linguagem oficial, não comportava elementos
doutrinários, isto é, não era empregada em sentido
técnico; "o significado era o do senso comum." Naghe,
Jorge., p. 40
32Diário da Bahia, 19 de fevereiro de 1919
33A Época. In Diário da Bahia, 11 de abril de 1918
34Rio 10 (A Tarde) - Noticia o Rio Jornal
O emprestimo à municipalidade da Bahia para o pagamento ao professorado,
complica-se...
...O sr. Wenceslau Braz quis ouvir a respeito o sr. Seabra..., e respondeu
ao presidente nesses termos:
Isso é uma questão interna que os poderes publicos do Estado
e do Municipio estão resolvendo la mesmo e como que vem fazendo
especulação política contra a qual protesto. Diário
da Bahia, 12 de abril de 1918, p. 1
35Diário da Bahia, 12 de abril de 1918, p. 1
36Diário da Bahia, 12 de abril de 1918
37A Tarde, 03 de fev., 1919, p. 2
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