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PODER MUNDIAL E TERROR 1


Muniz Ferreira
Professor de História Moderna e Contemporânea da UFBA


"Terrorism is part of the dark side of globalization.
However, sadly, it is part of doing business
in the World - business we as Americans
are not going to stop doing." 2

Gen. Colin Powel, Secretário de Estado dos EUA.



À medida que se dissipam as brumas, as quais - nos sentidos real e figurado - foram levantadas pelos terríveis atentados terroristas praticados contra o Centro Mundial do Comércio em Nova Iorque e as instalações do Ministério da Defesa dos Estados Unidos em Washington, aumenta o interesse por parte de determinados setores da opinião pública mundial em aquilatar, com objetividade, as implicações que os sinistros acontecimentos citados poderão exercer sobre o futuro desenvolvimento das relações internacionais, tarefa dificultada não apenas pela delicadeza e complexidade das questões envolvidas, mas também pela maneira intempestiva e, via de regra, superficial com que comentadores e analistas têm repercutido as locuções alarmistas e não poucas vezes escalafobéticas, produzidas pelos próprios personagens da tragédia, em particular, pelo governo dos Estados Unidos e seus aliados, por um lado, e os possíveis supostos cúmplices ou responsáveis por outro.
No fragor das explosões e das declamações apaixonadas, não falta sequer espaço para ameaças de retaliações cartaginesas e prognósticos apocalípticos de conflito mundial e destruição total. Outros náufragos da serenidade, agarrando-se sofregamente a um último fragmento de moderação em meio ao frenesi escatológico generalizado, balbuciam previsões oraculares desencontradas sobre o ingresso do planeta (mais uma vez!) em uma novíssima ordem mundial. Especula-se sobre a centralidade que o tema da segurança internacional e do combate ao terrorismo poderá vir a desempenhar no futuro das relações entre os estados nacionais. Em vista disto, anuncia-se o desempenho de uma função pretoriana por parte dos Estados Unidos (eventualmente em associação com seus aliados do ocidente) em relação a governos, grupos e movimentos "radicais" e "anti-americanos" mundo afora. Mas, sobretudo, legitima-se a oportunidade de tais empreendimentos, esgrimindo-se alegações que denunciam a imprevisibilidade, a universalidade e o poderio supostamente incontrolável dos movimentos terroristas no mundo de hoje, fornecendo-se, desta maneira, justificativas para o ingresso da sociedade internacional num novo ciclo de guerra fria. Ora, uma análise minimamente atenta da estrutura e do desenvolvimento do sistema internacional pode revelar o quanto de propagandístico e conscientemente mistificador oculta-se por detrás das afirmações mencionadas.

a) A preocupação com a segurança sempre ocupou um lugar central na estrutura dos sistemas internacionais:
De acordo com as elaborações mais influentes no âmbito dos estudos internacionais (Aron, Morgenthau, Hoffman, etc.), um sistema mundial de poder se constitui no momento em que as potências dominantes na cena global pactuam entre si, com o objetivo de impedir a deflagração de uma guerra total. Tal concerto, por sua vez, passa a ter como objetivo principal a manutenção do status quo político, militar e territorial entre os integrantes do sistema, haja vista que as principais ameaças à deflagração de um conflito generalizado entre elas advém das tentativas de efetivação de ambições expansionistas e hegemonistas cultivadas reciprocamente. Por outro lado, nas condições de inexistência de um Estado mundial dotado de recursos jurídicos e militares necessários à preservação da paz, a estabilidade das relações interestatais no interior do referido sistema deve-se apoiar necessariamente no equilíbrio de poder entre as potências pactuantes. Ante a necessidade de assegurar a convergência das potências mundiais na preservação da estabilidade da ordem sistêmica - ou seja, a não ocorrência de um conflito global - os sistemas internacionais têm demonstrado flexibilidade quando incorporam ao seu processo gestor atores emergentes periféricos que tenham, reconhecidamente, acumulado um montante de poder de expressão mundial (político, econômico, estratégico, etc.), não obstante a heterogeneidade de suas percepções sobre a ordem internacional. Fenômeno que se efetivou com a incorporação informal do Império Otomano ao sistema da Convenção de Viena na década de 50 do século XIX, o ingresso da URSS ao Tratado de Versalhes nos anos 20 da centúria passada e na admissão da China Popular no Conselho de Segurança da ONU nos últimos anos 70. O que torna possível afirmar, embora tautologicamente, que, se apenas as grandes potências mundiais participam da gestão dos sistemas internacionais, por outro lado, nenhuma grande potência mundial pode ficar excluída destes processos de gestão. O que significa que o desiderato primordial para a estruturação de todos os sistemas internacionais já existentes até os dias de hoje tem sido a garantia da segurança e a preservação do equilíbrio de poder, através da eliminação da ameaça de conflitos generalizados de alcance mundial. A incapacidade de cumprir com tal exigência sentenciou ao ocaso os primeiros sistemas internacionais quando da eclosão de guerras mundiais - a de 1914-1918 (Sistema da Convenção de Viena), a de 1939-1945 (Tratado de Versalhes). Por outro lado, o reconhecimento da eliminação da ameaça imediata de uma confrontação nuclear determinou o desaparecimento do último (sistema internacional da guerra fria). Logo, a vigência dos sistemas internacionais decorre sempre da necessidade de se evitar uma guerra mundial, bem como da incapacidade de se garantir, através de processos espontâneos, a paz mundial, em um mundo de nações soberanas e competitivas.
Por tais motivos, apenas se pode prefigurar a ocorrência de uma guerra mundial como resultado de uma quebra dramática do equilíbrio de poder entre as potências gestoras do sistema - as únicas com recursos de poder capazes de suportar uma conflagração de amplo alcance com suas parceiras -, jamais como resultado da perturbação representada pela contestação de atores estatais ou societais periféricos. Neste último caso, a preservação da integridade do condomínio das potências gestoras e o conseqüente enorme diferencial de poder vis à vis ao(s) contestador(es) periférico(s), conduzirá, no máximo, à eclosão de um conflito localizado ou, o que é mais provável, adquirirá o formato de uma simples expedição punitiva por parte das potências gestoras. Esta apreciação encontra-se sobejamente confirmada pelas guerras movidas pela coalizão ocidental contra o Iraque e a Iugoslávia nos últimos dez anos.
Por conseguinte, sem a ocorrência ou mesmo a possibilidade efetiva da guerra mundial - mas também de uma efetiva paz mundial - existem insignificantes possibilidades da ocorrência de quaisquer modificações de relevo na estrutura das relações internacionais.

b) O funcionamento dos sistemas internacionais foi, até aqui, orientado pela raison d`Etat de seus protagonistas, nunca pelas aspirações de justiça, liberdade e eqüidade das populações que integram a sociedade civil internacional.
Em conformidade com a definição esboçada acima, o primeiro sistema internacional da história contemporânea, o Sistema da Convenção de Viena, foi estabelecido tendo como principal objetivo extirpar do mundo os efeitos da Revolução Francesa. Tais propósitos conflitavam abertamente com as pretensões democráticas e emancipacionistas emanadas do século das luzes, transformadas, na visão conservadora dos gestores do sistema, em concepções subversivas e incompatíveis com a estabilidade do mesmo. Perspectiva que determinou a condenação pela Áustria (que, acreditem, era a potência política e militarmente hegemônica do mundo na primeira metade do século XIX!) do movimento de libertação dos patriotas gregos - cristãos ortodoxos - contra a dominação dos otomanos islâmicos nos anos 1820. Além do esmagamento dos movimentos nacionais da Europa centro-oriental durante a chamada "primavera dos povos" (1848-1849), outro exemplo precioso do predomínio da razão de estado sobre os princípios invocados quando da conformação dos sistemas internacionais foi o apoio prestado pela Inglaterra e pela França à mesma Turquia, antiga arqui-rival da cristandade européia não participante da gestão do sistema na guerra travada entre esta e a Rússia, sócia daquelas na Convenção de Viena nos anos 1853-1856. Perceba-se que, não obstante tudo isto, tal sistema justificava sua existência proclamando a defesa do mundo cristão contra seus inimigos (a chamada Santa Aliança, que tinha no Império tzarista um de seus baluartes) e a preservação da soberania legítima dos estados, colocada em cheque anteriormente pelo imperialismo napoleônico.
Situações que se repetiriam ao longo do século XX, por exemplo, na política de "apaziguamento" adotada pela coalizão franco-britânica em face das exigências territoriais de Hitler, quando o sistema do Tratado de Versalhes (1919 - 1939) fora constituído para deter o expansionismo alemão no pós-Primeira Grande Guerra. Bem como o apoio ostensivo dos EEUU e seus aliados a regimes obscurantistas e liberticidas (como Franco, Suharto, Duvalier e Mobutu) ao redor do mundo, em franco contraste com os postulados democráticos e progressistas evocados pelos líderes da aliança ocidental nos anos da última guerra fria.

c) A ordem internacional do mundo pós-guerra fria apresenta duas configurações potencialmente conflituosas: a que emana dos antagonismos econômico-políticos Norte-Sul e a que advém da competição político-estratégica entre as potências hegemônicas.
Entre a configuração e o desaparecimento do sistema internacional da guerra fria (ou da bipolaridade estratégica leste-oeste), transformações qualitativas se verificaram no status econômico internacional dos Estados Unidos da América, assim como na correlação de seu poderio econômico com o de seus parceiros euro-ocidentais. É sabido que desde o fim da Segunda Guerra Mundial tem ocorrido uma redução drástica, em termos proporcionais, da participação norte-americana no fluxo do comércio mundial e no volume de seus investimentos de capitais em outros países. Sua produção industrial tem perdido relevância em valores quantitativos e, sobretudo, competitividade, não apenas em relação às economias mais dinâmicas do ocidente, mas até frente à produção de certos países emergentes das regiões periféricas. Têm-se agravado sistematicamente ainda seu déficit comercial e o endividamento externo e interno.
É exatamente o oposto do que vem acontecendo com a economia de seus parceiros mais poderosos da União Européia e do Japão. O que significa que existe um descolamento crescente entre a posse da superioridade estratégico-militar e, por conseguinte, diplomática, da única superpotência atualmente existente, os EEUU e o protagonismo econômico cada vez maior de seus aliados da Europa Ocidental e do Pacífico. Ora, tais performances econômicas diferenciadas apontam, via de regra, para a cristalização de interesses e objetivos também distintos na esfera das políticas industriais, das políticas de investimento e, por fim, das políticas comerciais. O fato destas discrepâncias se verificarem no contexto da globalização provoca duas conseqüências: por um lado, propicia um movimento convergente das potências centrais no processo de reprodução e aprofundamento da subalternização das economias e sociedades periféricas do globo, incluindo aí os antigos e atuais países de orientação socialista (Albânia, Cuba, Moçambique, Cazaquistão, etc.); por outro lado, acirra a competição econômica por mercados e explicita as diferenças de enfoque sobre o funcionamento da economia mundial (contenciosos comerciais, legislação sobre patentes, etc.). Se esta interpretação for pertinente, isto significará que a confluência permanente dos interesses da aliança ocidental nas relações norte-sul constituirá a condição fiadora da não ampliação das fissuras entre os interesses internacionais conflitantes existentes nas relações norte-norte. Em tais condições, para os Estados Unidos, o alicerce de sua centralidade política internacional continuará a ser sua capacidade de utilizar sua superioridade estratégica, militar e diplomática para reivindicar a preservação de sua condição de líder inconteste da coalizão ocidental no movimento de afirmação dos interesses econômicos conjuntos do norte e na condução da aliança nos embates voltados para o enfrentamento punitivo dos movimentos de contestação oriundos das regiões periféricas.

d) Na resposta aos atentados de 11 de setembro se preencheu o lapso de legitimidade interna do governo norte-americano, superou-se o isolamento internacional da administração Bush e restaurou-se a convergência global das potenciais gestoras do sistema internacional.
Os ataques terroristas de Nova Iorque e Washington representaram uma erupção cutânea no corpo do sistema internacional. Com semelhante analogia, pretendo caracterizar o alcance limitado de seu significado do ponto de vista político-militar, mas tenciono também indicar que suas implicações podem evoluir rumo a uma deterioração de certos nexos do relacionamento internacional comparáveis a determinadas infecções, as quais, não obstante a simplicidade de seu tratamento em uma fase inicial, caso não sejam satisfatoriamente curadas, podem, eventualmente, degenerar em um câncer. De todo modo, contudo, não abalaram nenhum elemento essencial da estrutura internacional de poder.
Tendo impactado por seu atrevimento e pelo sacrifício copioso de pessoas inocentes (civis desarmados), as quais sob nenhum aspecto podem ser consideradas como objetivos militares, desencadeou, por outro lado, uma massiva campanha propagandística de repúdio à agressão e ensejou a recomposição de aspectos até então débeis na operacionalização das políticas interna e externa dos Estados Unidos. Não seria excessivamente exagerado dizer que, até a noite de 10 de setembro, o governo do Sr. George W. Bush era um dos menos populares da história da grande nação americana e um dos mais isolados no cenário internacional contemporâneo. Trazendo consigo o estigma da eleição mais confusa, duvidosa e de mais escassa representatividade da história estadunidense, Bush, ademais, é o homem responsável pela gestão da primeira queda nos índices de crescimento econômico de seu país nos últimos oito anos.
Paralelamente, no quadro das relações internacionais, a atual administração norte-americana vinha experimentando um sistemático desgaste devido à sua indiferença frente ao desmoronamento das negociações de paz no Oriente Próximo, sua recusa em assinar o protocolo de Kyoto, que propunha medidas de proteção ao meio ambiente, e a retirada da delegação norte-americana da Conferência Internacional contra o Racismo e a Xenofobia na África do Sul. Conservador e arrogante, o segundo Bush trouxe para a esfera da política internacional da potência hegemônica do planeta um enfoque compatível com a essência das soluções preconizadas por seu governo para o enfrentamento dos problemas sociais internos dos Estados Unidos: ampliação da repressão e aplicação da pena de morte. É o responsável pela ressurreição do mais controvertido programa de rearmamento ostensivo já concebido na história da política mundial: o programa "Guerra nas Estrelas". Os Estados Unidos são um dos poucos países democráticos do mundo em que o comando da política externa encontra-se nas mãos de um membro graduado do establishment militar, o General Colin Powel, condutor da guerra contra o Iraque e idealizador das mais modernas estratégias militares de intervenção norte-americana na periferia do mundo. Seu vice-presidente, Dick Cheney, já se notabilizou como secretário de estado durante a administração Reagan, ocasião em que percorreu a América Latina tentando conquistar o apoio dos governos da região para uma ação militar aberta contra a Nicarágua. Foi também o grande porta-voz da idéia da transformação dos exércitos latino-americanos em forças de policiamento interno e a transferência para as forças armadas dos Estados Unidos das funções de proteção do conjunto do continente das ameaças externas.
Este governo por definição belicista e de comprovada vocação imperial adquiriu, a partir dos momentos que se seguiram aos atentados suicidas às torres gêmeas e ao Pentágono, apoios internos e externos inimagináveis em condições habituais. Galopando o ápice da popularidade que pode ser concedida a um presidente da república - seus níveis de aprovação após os discursos de condenação aos atentados e promessas de vingança elevaram-no aos níveis obtidos por Kenedy e Reagan - e reconquistando a subordinação estratégico-militar e diplomática dos aliados europeus, o governo norte americano encontra-se dotado hoje de condições de implementar sua política exterior como nunca antes desde a ascensão de "Baby Bush". Desde já, o cenário mais provável do desenvolvimento futuro das relações internacionais é o seguinte: os Estados Unidos consolidarão seu projeto de unipolaridade estratégica assumindo a liderança da coalizão ocidental na luta não apenas contra o terrorismo, mas contra todas as chamadas intifadas globais (terrorismo, tráfico de armas e de drogas, ameaças de proliferação de tecnologias nucleares e armamentos biológicos, insurgências armadas localizadas e movimentos de contestação aos efeitos negativos da globalização), forçando uma confluência dos interesses europeus e japoneses para sua política, para além das diferenças político-diplomáticas e dos contenciosos econômicos existentes entre eles.
Porém, um cenário alternativo a este pode se configurar com o fracasso do projeto de policiamento planetário ostensivo pelos EEUU, o que pode ocorrer devido ao seu elevado custo financeiro e político, bem como ao sucesso da resistência dos adversários visados, a perseverança européia na construção de um grande pólo de poder alternativo, e o estreitamento da aliança russo-chinesa. Tal situação provocará um refluxo do engajamento norte-americano em seu projeto de paz imperial e de construção de um "orbis nostrum", possibilitará uma adesão européia ao projeto russo-chinês de gestão colegiada dos problemas internacionais através dos organismos multilaterais do sistema das nações unidas e ensejará a ocupação, pelos países do Terceiro Mundo, de posições mais favoráveis no processo de discussão e negociação de soluções para os problemas internacionais. Tal cenário, visivelmente mais favorável do que o anterior, todavia, não representará por si só um progresso significativo caso não se desdobre num movimento posterior de refundação das relações internacionais, para além das características hierárquicas, excludentes e conseqüentemente antagônicas inerentes aos sistemas internacionais de estados, baseado no equilíbrio de poder.
Esta tarefa transcendental, no entanto, só poderá ser realizada através do protagonismo dos setores organizados da sociedade civil mundial - correntes democráticas e de esquerda, organizações não governamentais, movimentos sociais, ambientais e de minorias, agrupamentos religiosos progressistas e grupos de ação comunitária -, uma vez hegemonizadas pelas forças avançadas do mundo do trabalho e da cultura. Apenas desta maneira encontraremos condições favoráveis à construção de relações internacionais pacíficas, democráticas, não excludentes e baseadas na observação dos valores emancipadores e humanitários.

Notas:

1 O artigo que se segue foi concluído poucos dias após os atentados do dia 11 de setembro de 2001, antes, portanto, do início das operações militares conjuntas empreendidas pelas forças armadas dos Estados Unidos e outros países ocidentais no Afeganistão. Uma versão simplificada do texto foi publicada no caderno Cultural do Jornal A TARDE de Salvador (BA), em 29/09/2001, com o título: "O sistema internacional após os atentados nos EUA".

2 "O terrorismo integra o lado obscuro da globalização. Contudo, lamentavelmente, ele é parte do fato de fazermos negócios com o mundo - negócios estes que nós, enquanto americanos, não vamos parar de fazer."

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